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Ódio de Bolsonaro exacerba as relações de racismo

Pronzato analisa o que mudou após o assassinato do Mestre Moa
publicado 11/10/2019
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Um ano sem o Mestre Moa do Katendê (Reprodução/Redes Sociais)

Via Mídia 4P:

Carlos Pronzato é cineasta documentarista, poeta e escritor. Nascido em Buenos Aires, na Argentina, ele mora há 30 anos no Brasil e é autor de mais de 70 documentários. Ao saber do assassinato do Mestre Moa do Katendê, ele produziu um documentário sobre o caso em apenas 14 dias. O vídeo, que está disponível em plataformas como o youtube, já foi exibido em diferentes estados do país e em capitais como Salvador. No próximo 17 de outubro, ele vai lançar, na capital baiana, seu mais novo documentário: “A contra república de Curitiba”, no Espaço Itaú de Cinema – Glauber Rocha, às 20h. Em entrevista ao Mídia 4P, ele comentou o cenário político atual e o presidente Jair Bolsonaro, a quem chama de o “inominável”. Para Pronzato, “as relações de racismo e discriminação, que sempre existiram no Brasil, foram exacerbadas com o discurso de ódio do atual presidente da nação”. Confira entrevista completa abaixo:

Um ano depois do assassinato de Moa, algo mudou no modo como você enxerga o que aconteceu?

Parece que, depois do covarde assassinato do Mestre Moa, as relações de condutas morais mínimas de convivência, os códigos de respeito da vida em sociedade foram ultrajados completamente por milhões de pessoas de alta periculosidade protofascista, incentivados previamente, desde a campanha eleitoral do presidente atual (Jair Bolsonaro) e agora desde a mesmíssima Brasília, sede do Executivo. O sentido do que aconteceu, então, mudou para pior porque as relações de racismo e discriminação, que sempre existiram no Brasil, foram exacerbadas com o discurso de ódio do Presidente – em todos os âmbitos das relações pessoais – e do seu gabinete ministerial, foi absorvido e colocado em prática pela militância atroz de milhões de pessoas que hoje expõem sem impedimentos essas lacras sociais do ser humano.

Como você relaciona esse caso com o nosso atual momento político e cultural?

Creio que respondi algo desta pergunta na anterior. O momento político está representado por um governo ilegítimo, já que arribou ao poder (político, já que ao poder econômico ninguém, pela via das eleições, chegou e nem chegará perto nunca) de forma ilegítima, concorrendo com todos, menos com quem liderava por ampla margem as pesquisas de opinião, como o ex-presidente Lula, antes do seu encarceramento arquitetado pela Lava jato e também pelo Golpe de 2016 que preparou o caminho para o novo golpe eleitoral da burguesia através do presidente atual. Neste contexto, a cultura e a educação foram as primeiras a sofrer os ataques privatistas de plantão. O povo foi e está sendo atacado em todos os níveis de produção, e aí se insere a produção da cultural popular, onde atuava Mestre Moa. É sintomático que no dia do primeiro turno, de madrugada, já acontecesse esta tragédia como que anunciando o que viria depois, quando ainda nem o segundo turno e o fracasso popular tinham aberto as comportas da vergonha mundial em que o Brasil iria se transformar a partir de 1º de janeiro deste ano.

O que você pensa que Moa acharia do Brasil de 2019?

Talvez um retorno aos tempos do famigerado policial Pedrito Gordillo nos anos 1920 na Bahia, um odiento perseguidor de capoeiristas e terreiros de candomblé. Com certeza estaria acumulando forças em todos os terreiros e rodas de capoeira de Brasil para enfrentar as forças da opressão que se fizeram mais visíveis nos últimos tempos.

Faz um ano que Moa morreu e vai haver uma exibição do documentário. Você pensa em exibir o filme em outros lugares?

O documentário tem sido exibido em muitas cidades pelo país afora e inclusive no exterior, já que está disponibilizado em espanhol e inglês no youtube. Às vezes, a gente está presente e debate com a plateia, mas em 99 % das exibições a gente não está presente e esse é o verdadeiro fim do cinema político, que se espalhe em cineclubes, universidades, escolas, organizações populares, etc. Sem a nossa intervenção, bem ao estilo daqueles que deflagram manifestações e se afastam da direção imediatamente para que as coisas andem de verdade e sem travas. Desde o início, o filme foi colocado no youtube ou disponibilizávamos o link. A primeira exibição através do link foi numa praça em Rio Branco, capital do Acre, antes da estreia em Salvador. A estreia foi no Pelourinho, no dia 23 de outubro de 2018, na Praça do Cruzeiro lotada.

Você fez o documentário em poucos dias. Tem vontade de atualizá-lo? Pensa em inserir o julgamento depois que ocorrer?

Sim, foi realizado em 14 dias, desde a primeira entrevista, no dia 9 de outubro até o dia da estreia, dia 23. Fui convidado por Associações e grupos de Capoeira baianos no dia 8 de outubro para a realização. Paulo Magalhães, que fez a produção executiva e me transmitiu o convite, conhecia a dinâmica veloz de alguns dos meus filmes mais urgentes, a maioria feitos no calor da hora. Coloquei toda minha experiência nesse tipo de documentários de intervenção política, sem recurso financeiro algum, mas com apoios logísticos – O Sindae, um Sindicato que ofereceu mobilidade, recursos humanos e o próprio prédio para montar o filme sem dormir durante alguns dias -, deixando de lado tudo nesses dias para oferecer o nosso tributo à memória do Mestre Moa e do povo baiense, de luta. Infelizmente, o documentário é como um livro ou uma pintura, ou uma partitura, assim que ele é exibido pela primeira vez você até pode fazer algumas mudanças, tenho feito muito isso até fechar definitivamente um trabalho, exibindo para os protagonistas sociais. O documentário é uma composição onde diversos fatores artísticos, além de jornalísticos, se entrelaçam para criar uma obra no campo político, mas também artístico. Portanto, acho que este documentário especificamente relata um momento específico, antes do julgamento. Muitos dos meus documentários, como a maioria, refletem o momento em que foi realizado e valem por isso. Acrescentar o que quer que seja já é terreno diário jornalístico.

Você faz um cinema combativo e assinou documentários sobre a Revolta do Buzu em 2003 e sobre as mães da Plaza de Mayo. Qual é, pra você, a importância desse tipo de cinema?

A importância é o que pode provocar em ações concretas principalmente e em formação histórica e política fora das grades curriculares, seja na Academia, fora do cinema comercial, seja nas TVs educativas, comunitárias, legislativas, universitárias e hoje nas plataformas digitais. Por exemplo, é fato revelado pelos próprios protagonistas que o documentário da Revolta do Buzu, realizado em 2003, na Bahia, foi fundamental para a formação dos grupos do Passe Livre pelo Brasil afora e que concluíram sua grande performance na insurreição popular de junho 2013, dez anos depois. Também o documentário realizado no Chile com os estudantes secundaristas, “A Revolta dos Pinguins”, em 2007, foi muito exibido nas escolas no Brasil como importante subsídio metodológico para a ocupação das Escolas em São Paulo em 2016, as que também ganharam um documentário: “Acabou a Paz, Escolas ocupadas em SP”, muito utilizado também didaticamente para ocupar outras e outras escolas pelo país afora. E por aí vai. Essa a principal importância deste cinema.

Quais dificuldades vocês enfrentaram para realizar este documentário sobre Moa e quais vocês ainda enfrentam para exibi-lo?

A principal dificuldade foi o tempo, já que queríamos exibi-lo imediatamente para contribuir com o processo eleitoral em curso, perto do segundo turno. Quero esclarecer que eu não voto por opção política neste sistema burguês, mas nessas ultimas eleições, o bipartidismo de sempre, de tênues diferenças políticas, se transformou numa luta inglória contra um monstro indigesto e, portanto, o campo eleitoral também se transformou para mim em terreno de luta. A outra dificuldade foi a falta total de recursos financeiros para conformar uma equipe maior e ter a tranquilidade de ter na retaguarda, pelo menos, as contas pagas. O que não aconteceu e mergulhamos 14 dias em quatro turnos diários na realização deste peça de artilharia contra as trevas político-sociais nas quais estamos vivendo hoje no governo do inominável. E algo que não pode deixar de ser dito, foi o apoio total da família para realizar o trabalho, as entrevistas. Para exibir não temos tido dificuldades até agora e para se prevenir desse tipo de obstáculos foi postado imediatamente em plataforma digital e é dali que as pessoas organizam suas sessões.

Em uma de suas entrevistas, você afirmou que o documentário é “um material de contra-ataque à realidade social política de hoje”. De lá pra cá, a situação piorou ou melhorou?

A situação nunca foi boa, nem durante os governos progressistas, pelo menos para aqueles que não têm muita circulação nos aparatos do Estado como a gente, já que se formos integrados nos governos perderíamos muito nossa capacidade de denúncia. Claro que se fosse num governo revolucionário seria diferente, mas até agora não tive oportunidade de morar em países com governos desse tipo, apenas progressistas, o que já é um pequeno avanço, mas alguns de nós preferimos a liberdade total de ação. Mas hoje a situação piorou, claro, a situação do país. Já a nossa, de documentaristas sociais, nos obriga a dobrar o ritmo de trabalho. Por exemplo, nem estava nos meus planos realizar um documentário sobre a Lava jato este ano, mas depois das revelações do The Intercept em junho deste ano realizamos A Contra República de Curitiba, lançado em agosto na Vigília Lula libre e noutras capitais e aqui na Bahia será no dia 17 de outubro, às 20h, no Espaço Itaú de Cinema Glauber Rocha. E seria muito bom se em breve pudéssemos também exibir num Cinema como esse o documentário do Mestre Moa.

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