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Mestre Moa queria abrir instituto cultural com seu nome

Mídia 4P apresenta segundo episódio de série de reportagens especiais
publicado 30/08/2019
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Mestre Moa do Katendê (Reprodução/Mídia 4P)

Via Mídia 4P:

Fundador do Afoxé Badauê, Moa do Katendê era um multiartista e nutria sonho de erguer instituto com seu nome



Ele tinha vários projetos relacionados à cultura. Era mestre de capoeira, dançarino, compositor, músico, artesão e foi um dos principais fundadores do afoxé Badauê. Na capoeira, educava crianças e falava da importância da cultura e de como se posicionar na sociedade. Na música, suas letras traziam a resistência do povo negro. No afoxé, levava a beleza da dança afro, dos instrumentos musicais e das histórias dos orixás.

Um multiartista. Esta é a forma que a fisioterapeuta Jasse Mahi, 28 anos — e muitas outras pessoas que tiveram contato com ele —, lembra do pai, Romualdo Rosário da Costa, o Moa do Katendê que teve a trajetória interrompida por 12 golpes de faca após ter declarado seu voto ao então candidato à Presidência da República pelo PT Fernando Haddad. Os golpes foram deferidos pelo barbeiro Paulo Sérgio Ferreira de Santana, 36, eleitor de Jair Bolsonaro, que será julgado no próximo 21 de novembro. O caso teve repercussão internacional.

“Meu pai costumava dizer que os trabalhos culturais teriam que ser realizados por amor e não por dinheiro porque cultura não se compra e não se vende. Nossos ancestrais deixaram de presente pra nós”, conta Jassi, em entrevista para o portal Mídia 4P.

Para seus alunos, Moa ensinava, conta sua filha, como se defender em todos os aspectos e como se comportar diante da sociedade racista. “Até ele se colocar forte e ter seu nome reconhecido diante da sociedade, sofreu muito (com o racismo)”, acrescenta.

Como compositor, ganhou diversos festivais em blocos carnavalescos da cidade, como do bloco ‘Os Românticos’, em 1976. Três anos depois, Caetano Veloso gravou seu ijexá Badauê, no disco Cinema Transcendental. “Misteriosamente/ O Badauê surgiu/ Sua expressão cultural/ O povo aplaudiu”, diz a canção cantada pelo tropicalista.

“Não tenho uma preferida. Amo todas porque cada uma tem um significado diferente. As músicas dele são envolventes, muitas falam de resistência do negro”, conta Jassi.


Badauê
Nascido e criado no bairro soteropolitano do Engenho Velho de Brotas, especificamente na localidade do Dique Pequeno, Moa costumava se reunir, na década de 70, com um grupo de amigos, jovens negros, na Curva do Asilo, próximo ao local onde funcionava, na época, o Hospital Juliano Moreira e perto da Ladeira de Nanã.

Eles se autointitulavam “jovens loucos”, em alusão à proximidade do hospício. Foi daí que surgiu o afoxé Badauê, cujo nome foi dado por Moa. Ele dizia que não sabia de onde vinha a palavra, mas ela estava no refrão de uma canção que ele escreveu para o Ilê Aiyê em 1975. Aos amigos, contou que a palavra “Badauê” havia sido soprada pelos orixás no seu ouvido.

“Moa foi uma figura muito determinante para os rumos dos afoxés. Mas sua atuação não se deu apenas neles, no carnaval e na música. Ele era um multiartista. Passou pela dança, pela capoeira, a sua primeira vertente cultural, pelo artesanato, pela poesia. Em todas elas, havia um fortalecimento das suas construções identitárias, das suas origens”, ressalta o produtor e pesquisador cultural Chico Assis, que, em 2017, defendeu uma dissertação de mestrado sobre a memória do Afoxé Badauê, na Universidade Federal da Bahia (Ufba).


Reprodução

O Badauê, um dos blocos que trouxe à tona questões da negritude, foi criado em 13 de maio de 1978 e, no ano seguinte, teve sua estreia no carnaval de Salvador. Assis ressalta que havia um diferencial naquela agremiação fundada pelos “jovens loucos”, que se inspiraram na própria ancestralidade, na vivência com o candomblé, na história de antigos afoxés do bairro e nas formas encontradas por eles para vencer o racismo. “Não foi criado dentro de terreiro, como se esperava naquela época. Eles estavam mais ligados às artes. Tinham liberdade para afoxés com temas diversos como o carnaval, suas paixões, além dos temas religiosos. A maioria dos afoxés levava cânticos do candomblé”, diz.

Diferenciavam-se, também, na hora de adentrar na avenida. Desfilavam em alas. A grande cabeça por trás das inovações estéticas e das composições musicais que consagraram o Badauê era Moa. “Ele ajudou a potencializar a visibilidade dos afoxés e a despertar o interesse da juventude como uma forma de participação no carnaval”.

No primeiro ano do desfile, acrescenta Assis, dizem que o Badauê saiu com mais de duas mil pessoas, mesmo, naquela época, sendo proibido que os afoxés desfilassem com mais de 500 associados por “questões de segurança”. “Foi transgressor e atraiu a atenção de outros artistas como Gil, Caetano Moraes Moreira, Pepeu Gomes. Enquanto Moa esteve à frente do Badauê, ele influenciou a sonoridade da musicalidade baiana da época. Isto costuma ser silenciado, mas houve uma participação dos afoxés na configuração do que veio a ser a Axé Music”.

Em sua coluna em um jornal local, Assis resumiu a importância da trajetória de Moa. “O seu legado merece uma atenção especial, a memória deste Mestre se relaciona com a memória dos blocos afros e afoxés, do carnaval e da música da Bahia, da capoeira, da cultura afro-brasileira”.


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Capoeira
Entre 1985 e 1986, Moa deixa o Badauê e se torna um andarilho a levar suas formas de expressão artística onde quer que fosse. Criou grupos de capoeira no Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, entre outros estados. Ultrapassou os limites geográficos do país e a levou para países como França, Alemanha e Espanha.

Morador da capital paulista, o mestre de capoeira Plínio Ferreira foi muito próximo de Moa e conta que a trajetória do baiano na capoeira é muito longa e começou muito antes dele se tornar esse andarilho. Ela teve início em 1962, na escola do mestre Bobó, onde o multiartista ministrou aulas para outros importantes mestres. Era um dos líderes da Cinco Estrelas, a academia de Bobó.

Em 1987 e paralelamente a todas as outras atividades artísticas, Moa se formou mestre. “A partir desse momento, ele já está viajando pelo Brasil, ministrando oficinas de dança, de capoeira e das outras coisas que ele fazia nas artes, de artesanato”, destaca Ferreira.

Em 1990, o paulista e o baiano participaram do projeto “Turma faz arte”, onde atuavam em algumas comunidades em São Paulo, com aulas de capoeira, de percussão, de dança afro. “Ele atuava nos três eixos. Ficou aqui até 1996, ministrando aulas na minha escola. A gente tinha uma relação muito estreita. Depois, em 98, voltou de vez pra Salvador e assumiu a diretoria da Associação Brasileira de Capoeira Angola”, relembra.


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No Dique do Tororó, em Salvador, Moa realizou um projeto de capoeira com jovens. Mas não deixou de ir para outros estados e países. “Em Porto Alegre também deu aula com mestre Ratinho. Na minha sede de capoeira em Florianópolis, ele era muito presente também. E na Argentina”, acrescenta Ferreira.

Moa, no entanto, não deixou nenhum aluno formado na capoeira. “A trajetória dele foi bastante ligada ao nosso pessoal, mas ele deu muitas aulas em escolas, nas periferias, em projetos sociais. Ele fez músicas para a capoeira que são cantadas no mundo inteiro. E trabalhava a capoeira como inclusão social. Ele não tinha essa pretensão de formar capoeiristas. Tinha mais a ideia de formar cidadãos”, ressalta o capoeirista paulista.

Para Ferreira, a maestria de Moa do Katendê não foi comum. “Não foi essa maestria comum de atuar num lugar só, fazer uma escola. O Moa era uma pessoa que tinha uma missão maior, de espalhar essa mensagem que era integrativa. Não era só capoeira, mas a questão do afoxé, que ele era um militante. A música, o artesanato. Tudo ligado às tradições africanas”.

Sonho
Com toda essa experiência acumulada, Moa queria centralizar as diferentes vertentes culturais na construção física de um sonho: levantar as paredes do Instituto Moa do Katendê, no Dique Pequeno, localidade do bairro onde nasceu.

“Ele queria realizar no instituto todos os trabalhos dele”, conta a filha Jasse Mahi. Como o capoeirista não teve tempo para edificar seu sonho, familiares tentam, hoje, dar andamento à obra.

“Eu comecei após o falecimento dele com a ajuda financeira de alunos, mestres de capoeira e outros amigos de meu pai”, planeja a filha de Moa . “Vamos fazer no local todos os trabalhos culturais dele”.

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