Política

Você está aqui: Página Inicial / Política / A maioria que Bolsonaro não tem

A maioria que Bolsonaro não tem

Conrado: respeitar os direitos de todos é o pedágio que as maiorias pagam à democracia
publicado 01/06/2019
Comments
bessinha (4).jpg

De Conrado Hübner Mendes, doutor em Direito e professor da USP, na Época:

“Governo do povo, pelo povo, para o povo” é a pior e a melhor síntese de democracia que dicionários de política podem oferecer. Pior porque lhe falta substância. Melhor porque tem poesia e toca o coração. A definição traz um problema prático e uma armadilha: “povo” permanece um ente abstrato e teórico, cuja força retórica convida abuso e distorção.

Há quem apele à aritmética e enxergue democracia como “governo da maioria, pela maioria, para o bem da maioria”. Basta contar cabeças e converter a maioria em “povo”. A desigualdade e a astúcia política podem gerar, na prática, equação ainda mais marota: “Governo da minoria, por meio da maioria dominada, para o bem da minoria”. Converte-se falsa maioria em “povo”, uma fraude ao quadrado: a minoria em pele de maioria, e essa falsa maioria em pele de “povo”.

Cientistas políticos que dedicaram a vida a estudar a política do século XX já o disseram. O conservador Giovanni Sartori, por exemplo: “Democracia não é regra da maioria pura e simples, mas regra da maioria limitada”. Quando um regime expressa apenas a vontade da maioria (ou da falsa maioria), estamos todos em apuros. E daí surge um enigma: maiorias desempenham papel crucial na matemática da democracia, pois com maioria de votos de cidadãos se elege, com maioria de votos de parlamentares se governa, com supermaioria se emenda a Constituição. Mas a entidade “povo” aparece quando?

Não há “povo” nas maiorias brutas que passam o trator, apenas numa comunidade que reconhece a dignidade de cada um. Maiorias podem decidir se cobram mais ou menos imposto, se investem em hidrelétricas ou parques eólicos, se organizam a Olimpíada ou constroem praças e estradas, mas não podem decidir se a liberdade de expressão, se direitos de mulheres e de crianças ou direitos indígenas devem ou não ser acolhidos. Direitos e liberdades se respeitam indistintamente, não só os dos correligionários. Chamar os que discordam ou protestam de imbecis e idiotas úteis agride esse pré-requisito.

Para complicar, ao lado desse “povo nas instituições”, que toma decisões nessa intrincada rede de procedimentos por regra de maioria ao mesmo tempo que resguarda direitos e liberdades, há também o “povo nas ruas”, aglomerações informais que se reúnem para comunicar alguma reivindicação pública. A massa nas ruas é mais difícil de decifrar e medir, mas não se pode ignorá-la. Merece proteção, escuta e resposta.

Traduzir o governo Bolsonaro em números ajuda a detectar múltiplas formas de abuso das noções de povo e maioria. Bolsonaro recebeu 57 milhões de votos, pouco mais de 40% do eleitorado brasileiro. Eleito por um voto de protesto mais do que um voto programático, não surpreende que boa parte de suas iniciativas normativas até aqui (rearmamento, liberação de agrotóxicos cancerígenos, negação de consensos científicos, eliminação de radares de velocidade e de outros aparatos fiscalizatórios, encolhimento de políticas sociais) seja rechaçada por parcela importante de seus próprios eleitores. Com sua forma antipolítica de governar, nem sequer maioria no Congresso busca construir. Prefere atiçar seu “povo nas ruas”, ainda ruidoso, mas não majoritário. Consegue fazer algum barulho graças ao poder aglutinador das propostas da Previdência e do pacote anticrime. Fora desse núcleo, perde ainda mais.

Seus índices de aprovação despencam. Em quatro meses, levou um tombo de 72 pontos entre os que o consideravam “ótimo ou bom” dentro do mercado financeiro: de 86% para 14%. A desaprovação geral do governo superou a aprovação pela primeira vez: 36,2% da população considera a gestão “ruim ou péssima”, contra 28,6% que considera “ótimo ou boa”. É o pior índice de popularidade no começo de um governo desde Fernando Collor. O governo “perdeu gordura”, segundo o presidente do Ibope. E sua reforma prioritária não foi conquistada ainda.

Se nada disso invalida a legitimidade de sua eleição e de seu mandato, desmistifica o “povo” que ele invoca — uma falsa maioria em pele de “povo”. Números reais são diferentes dos números que pululam em sua imaginação. Bolsonaro não tem a maioria que gostaria de ter. Mesmo que a tivesse, não poderia fazer o que pretende. Como não a tem, fabrica-a. Ele diz que tem e está convencido de que pode.

Gostou desse conteúdo? Saiba mais sobre a importância de fortalecer a luta pela liberdade de expressão e apoie o Conversa AfiadaClique aqui e conheça!