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A depressão da Democracia virou crise existencial!

Hübner Mendes: Bolsonaro segue em campanha para atiçar emoções primárias
publicado 21/12/2018
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O Conversa Afiada reproduz da revista Época artigo de Conrado Hübner Mendes, doutor em Direito e professor da USP:

Potentes, prepotentes e impotentes


Se nossa democracia falasse, diria que 2018 tornou sua depressão recente em aguda crise existencial. Se nossa democracia aprendesse, reconheceria que sua sobrevivência depende da reconstrução de padrões de convivência e disputa política que consigam domesticar a potência da guerra digital; neutralizar a prepotência de atores “antissistema” que lançam ataque aberto à Constituição e a grupos vulneráveis; e curar a impotência das instituições de mediação (partidos, mídia, universidades) para conter a ameaça existencial e proteger o interesse público; impotência, em última análise, do voto para expressar preferências políticas palatáveis.

A guerra digital travada em câmeras de eco, distantes de qualquer esfera pública aberta à contestação, começa a substituir métodos (do jornalismo e da ciência) para aferir a veracidade de fatos e gerar consensos. Nas bolhas sem ruídos, a ligação afetiva com a identidade do emissor vale mais do que a plausibilidade da mensagem. Ali, invenções sobre a escola que estimula a perversão sexual, sobre a malignidade das vacinas ou sobre a Terra plana, desde que transmitidas por pessoa de confiança, são aceitas como verdade (quando a verdade ainda importa). Se a mentira esdrúxula passa, imagine as notícias falsas menos inverossímeis.

É nesse poderoso terreno, livre do argumento e da dúvida, livre da transparência e do contraponto (ou do accountability), que o novo presidente inflamou seus apoiadores contra um inimigo engenhosamente construído. O combate a esse inimigo aceita qualquer meio, mesmo que contrário à Constituição. Continuará a recorrer, por tempo indeterminado, a esse bode expiatório para justificar as falhas do governo que se inicia. Se a estratégia de culpar o antecessor por suas frustrações não é nova, sua aplicação nesse ambiente blindado das redes tem potencial destrutivo desconhecido. As eleições de 2018, portanto, não acabarão tão cedo, e o terceiro turno será atípico.

Primeiro, porque o presidente eleito seguirá em campanha subterrânea para atiçar emoções primárias. Governar torna-se mais parecido com disputar eleições. Segundo, porque irregularidades precisam ser olhadas e responsabilidades atribuídas, mas não aposte no Judiciário para essa missão.

As eleições foram ambiente prolífico para o Febejapá — o Festival de Barbaridades Judiciais que Assolam o País. A menção honrosa vai para juízes que, a pretexto de coibir propaganda eleitoral nas universidades, impediram debates sobre democracia e arrancaram faixas contra o fascismo e a ditadura. O prêmio, contudo, fica com o TSE. O tribunal sabia que nada sabia sobre fake news. Convocou especialistas, montou conselho consultivo (pouco consultado), fez pacto de colaboração com partidos (de baixa adesão), disse até que podia anular eleições. Só não soube superar a apatia diante da maciça disseminação de notícias falsas. Cada ordem de retirada de notícia falsa (de efeitos consumados) era acompanhada por avalanche ininterrupta. Preferiu julgar o varejo do caso a caso em vez de exercer sua competência regulatória. Fez também vista grossa a aparições desiguais de candidatos na TV. Manteve-se no ritmo analógico (e de inconsistência decisória) diante da realidade digital. Rosa Weber concluiu que o TSE saiu “muito maior das eleições”.

Essa homenagem involuntária da Justiça a Stanislaw Ponte Preta, cronista que narrava, no começo da ditadura, o Febeapá — Festival de Besteira que Assola o País —, teve senso de oportunidade: veio às vésperas dos 50 anos do AI-5, ato mais violento da história constitucional brasileira, que fechou o Congresso, cassou mandatos, suspendeu direitos políticos e, sem se esquecer dos juízes, eliminou suas garantias e aposentou três ministros insubmissos do STF.

Para terminar o ano com leveza, vale uma dose de “quinoterapia”. Num de seus quadrinhos, Quino retrata soldado com fuzil se dirigindo a professor: “Uma curiosidade, professor: quantas ideias seu intelecto dispara por segundo?”. Na almejada pátria sem minorias, feita de escolas sem diversidade, o fuzil não serve só como metáfora. Democratizar o fuzil é política pública para governo que entende porte de arma como sinônimo de segurança, promete mandar ativistas para a “ponta da praia” e planeja vigiar e punir indivíduos fora da régua ou professores desafinados. Quino nos admira: “Se é verdade que errar é humano, ninguém poderá nos negar o mérito de haver alcançado um nível de humanidade realmente assombroso”.