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Recall: o povo elege e destitui

A crise se resolve no gramado e não no tapetão
publicado 09/06/2016
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bessinha fedor

O professor Comparato defende o recall há muito tempo.

Mais recentemente, o senador Requião apresentou um projeto de eleição já, com recall.

Agora, o respeitado embaixador Jorio Dauster resume a proposta de forma brilhante: "quem com o voto elege, com o voto também pode destituir".


Falência do presidencialismo, SOS recall

Chegados ao último ato do processo de impeachment da presidente Rousseff, vai ficando mais claro para todos a falência do presidencialismo brasileiro. Na origem do problema está a fragmentação e descaracterização dos partidos políticos, 35 agremiações cujas siglas não encontram respaldo em programas capazes de servir como critério para as decisões dos eleitores. Transformados muitos deles em balcões de negócios, esses agrupamentos incidentais tornaram o sistema de coalizões, único possível diante da multiplicidade de facções, uma mera roleta, capaz de oferecer um número diferente a cada giro dos eventos políticos.

Diante dessa triste realidade, ainda mais grave pela combinação maléfica da judicialização da política e da politização do Judiciário, volta a se falar em parlamentarismo ou nas formas intermediárias de semipresidencialismo ou semiparlamentarismo. Conquanto sejam indiscutíveis as vantagens teóricas do regime parlamentar, é evidente que ele só poderia funcionar no Brasil caso houvesse, preliminarmente, a redução do número de partidos para algo em torno de quatro ou cinco, num processo que conferisse identidade doutrinária a cada um deles segundo as velhas e incontornáveis noções de direita, centro e esquerda.

Mas quem faria isso? As raposas enternecidas com o futuro dos pintinhos? O Supremo Tribunal Federal, que, acatando unanimemente em fins de 2006 o voto do ministro-relator Marco Aurélio Mello, considerou inconstitucional a "cláusula de barreira" contida na lei nº 9.096? O fato é que, sem essa correção prévia, a geleia geral que hoje conhecemos daria origem a uma instabilidade absoluta, em que qualquer primeiro-ministro poderia ter vida mais breve que uma flor.

Sendo assim, pareceria mais sensato e realista cuidar de aprimorar o presidencialismo, pondo fim às coligações partidárias, dificultando as trocas de partido por parlamentares, garantindo que as eleições não mais serão conspurcadas pelo financiamento empresarial de campanhas e, last but no least, revendo as regras abstrusas do próprio processo de impeachment.

Nada disso, porém, impediria que, no futuro, um mandatário voltasse a perder a capacidade efetiva de governar por inépcia, pela perda de apoio dos partidos que o levaram ao poder, ou qualquer outro motivo que conduza à paralisia da máquina administrativa, a uma séria crise econômica e social.

A solução para esse tipo de situação existe e é o recall político ou referendo revocatório, um instrumento com longa tradição jurídica que implica a revogação do mandato de governantes através da manifestação direta dos próprios eleitores, vindo somar-se, como instrumento de democracia participativa, ao plebiscito, ao referendo e à iniciativa popular.

Originado na Grécia, o recall do presidente da República está inscrito na constituição da Bolívia e da Venezuela, havendo um esforço em curso para usá-lo a fim de afastar Maduro do poder. Sua aplicação mais intensa ocorre nos Estados americanos, onde já serviu para remover dois governadores e inúmeros ocupantes de cargos eletivos, inclusive prefeitos. Não se trata, porém, de algo estranho ao ordenamento jurídico nacional, pois algumas de nossas primeiras Constituições estaduais republicanas o adotaram e, mais recentemente, foram feitas diversas propostas de emenda constitucional no Senado visando a instituição do recall para determinadas autoridades eleitas.

O recall político pode levar à destituição do presidente da República e de outros mandatários assim como o impeachment, mas dele se distingue em dois aspectos importantíssimos: primeiro, por exigir apenas a perda de confiança da maioria dos eleitores, mesmo que o mandatário não cometa crime de responsabilidade; segundo, por não ser decidido pelo Legislativo, e sim mediante a plena expressão da vontade popular. Em termos futebolísticos, a questão se resolve no gramado e não no tapetão.

O processo se inicia pela coleta de assinaturas de eleitores devidamente identificados, devendo ser atingido determinado número de aderentes para que o Tribunal Superior Eleitoral organize o processo de votação pelo qual os eleitores dirão apenas se querem ou não manter no poder determinado governante - o que, no caso do Brasil, deveria incluir, além do presidente da República, os governadores e prefeitos de municípios com grande contingente populacional. Confirmada a rejeição do governante por maioria simples, assumiria seu substituto legal - boa razão para que, no futuro, se considere com grande atenção quem são os vices em qualquer chapa.

A maior crítica que se faz ao recall é a de que ele poderia levar a um aumento da instabilidade política - como se já não a conhecêssemos nos dias de hoje ou como existiria no semiparlamentarismo com 35 protagonistas! Mas há duas medidas que podem minimizar radicalmente tal risco: em primeiro lugar, o estabelecimento de critérios rígidos para o acionamento do recall - por exemplo, no caso do presidente, 3% do eleitorado em 9 unidades da Federação. Em segundo lugar, o governante só poderia ser objeto de recall uma única vez em cada mandato, e somente depois de transcorrido um ano de sua posse (período em que geralmente são tomadas as decisões mais impopulares).

Com tais salvaguardas, capazes de evitar a banalização do instrumento, o recall introduziria no Brasil uma forma madura de cidadania ativa, que é o corolário lógico do direito de sufrágio: quem com o voto elege, com o voto também pode destituir.

Jorio Dauster é embaixador e consultor de empresas. Foi presidente da Vale de 1999 a 2001.
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