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Sem distribuir, o Brasil não cresce

Piketty: fazer rico pagar imposto? Só na porrada!
publicado 06/10/2017
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A distribuição da renda no Brasil é como a da África do Sul, que viveu sob o apartheid até 1994

O Conversa Afiada reproduz trechos de entrevista da competente Maria Cristina Fernandes no PiG cheiroso, no caderno "Eu&Fim de semana":

Valor: No livro o senhor fala que a redução das desigualdades derivou mais das duas grandes guerras mundiais do que da democracia. A escalada de tensões sociais hoje, com a eleição de Donald Trump e o crescimento do nacionalismo europeu, mostra que é esse o rumo que estamos tomando ou ainda é possível acreditar que na democracia como caminho para a redução das desigualdades?

Piketty: É claro que a democracia é um caminho. O que digo no livro é que a democracia, historicamente, não tem bastado. Só os choques violentos é que transformaram o status quo das elites que rejeitavam a redução das desigualdades. Foi o conservadorismo ideológico das elites que provocou as grandes guerras. Hoje não estamos na mesma situação. Há instituições democráticas muito fortes que dão sustentação aos ideais de uma sociedade mais igualitária. Mas não se pode descuidar dos sinais que eventos como o Brexit podem representar para o desmantelamento de um modelo que, se não é perfeito, ainda permite buscar uma coordenação, uma saída estável para uma sociedade menos desigual. Descobrimos que tudo isso pode ser frágil. O que aconteceu nos Estados Unidos é absolutamente intrigante. Foi impressionante de ver a capacidade de Trump de construir uma identidade comum com classes populares e médias que faz com que as políticas sociais tenham um viés racial e xenófobo. Se a gente pega a crise da dívida pública na Europa, por exemplo, é possível imaginar uma saída mais negociada. No pós-guerra, as dívidas públicas foram anuladas em 1953 porque decidiu-se fazer um investimento no futuro, nas futuras gerações e zerar os erros do passado. É isso que a Europa precisa hoje, investir no futuro. A alternativa é o caos, a inflação e a explosão da união monetária. É isso que pode acontecer se determinadas forças políticas na Alemanha, na Catalunha, na França, em Portugal prevalecerem. Essas tensões podem evoluir rapidamente.

Valor: O nacionalismo de direita que fomentou os regimes fascistas do século passado tem poder hoje para repetir a ameaça à democracia, na Europa, nos Estados Unidos ou no Brasil?

Piketty: Confio na capacidade de nossas instituições reagirem, na Europa, no Brasil, na China, de encontrarem seus caminhos para se desenvolverem com democracia. No caso do Brasil, por exemplo, há de fato um nível de concentração muito excessivo para o país se desenvolver. Pode-se dizer que o país não passou por choques políticos violentos como aqueles que, na Europa, reduziram as desigualdades, mas a opção democrática também pressupõe que as elites do pais aceitem pagar mais impostos e que o Estado faça mais investimentos sociais.

Valor: No seu livro "Às Urnas, Cidadãos", o senhor disse sobre o Brasil: "O sistema tributário é pesadamente regressivo e, frequentemente, financia despesas públicas com as mesmas características. As classes populares pagam impostos muito pesados que chegam a 30% sobre a eletricidade, ao passo que sobre a herança é de apenas 4%. As universidades públicas só beneficiam uma elite de privilegiados". O senhor mantém o diagnóstico?

Piketty: Sim, mantenho, e subscrevo os achados mais recentes de Marc Morgan que demonstram que o Brasil é, de fato, um dos países mais desiguais do mundo. E uma desigualdade que só concorre com a da África do Sul, país que saiu do apartheid em 1994. Morgan concluiu que os níveis de desigualdade no Brasil não foram reduzidos de maneira significativa. Os mais pobres viram sua participação na renda nacional crescer muito ligeiramente, os 50% mais pobres aumentaram sua fatia na riqueza do país de 11% para 13%. Enquanto isso, os 10% mais ricos detêm uma parcela que passou de 55% para 53%. Então os governos democráticos do Brasil, sejam de direita ou de esquerda, não têm sido capazes de reduzir a desigualdade. Uma das razões é que, a despeito das políticas sociais que beneficiaram os mais pobres, a estrutura de impostos no Brasil se mantém intacta. Não há reformas significativas na progressividade fiscal e não haverá nenhuma mudança nisso se o país não decidir enfrentar questões como a taxação sobre herança e sobre fortunas.

Valor: Ao se valer do imposto de renda, o trabalho de Morgan, assim como o de outros estudiosos brasileiros, não minimiza o fato de 83% dos brasileiros não pagarem imposto de renda?

Piketty: Os estudos de Morgan, na verdade, são pioneiros no cruzamento dos dados do imposto de renda e das pesquisas em domicílio. É um trabalho de fôlego para colher de diferentes fontes os dados mais fidedignos sobre a renda do país. E é um estudo que teve muito cuidado em colher os dados mais adaptados para cada faixa de renda. Então, de fato, o imposto de renda incide apenas sobre 17% da população, mas há impostos indiretos extremamente pesados que comprometem sua renda de maneira muito mais significativa do que o imposto de renda o faz sobre a fatia minoritária e mais rica da população, ainda mais se levarmos em conta que uma parte desses contribuintes se evadem com isenções sobre lucros e dividendos. Esta é uma tentativa de mensurar a progressividade do sistema fiscal no Brasil [neste momento mostra, no tablet, o livro a ser lançado na próxima terça-feira no Brasil com um capítulo de sua autoria, "Tributação e Desigualdade", organizado por José Roberto Afonso]. Conclui por mostrar que falta, de fato, a noção de progressividade é inexistente no país.

Valor: Esse foco na taxação de propriedade e renda não corre o risco de penalizar a classe média em vez dos mais ricos, que têm mais meios de escapar do cerco?

Piketty: Não se trata de tributar as pequenas propriedades, mas as grandes fortunas que cairão em mãos de pessoas que não trabalharam para merecê-la. É uma questão de justiça social. Os países que se desenvolveram adotam, há mais de um século, uma política de progressividade fiscal que permanece desconhecida no Brasil e que bloqueia seu desenvolvimento.

Valor: O discurso predominante no Brasil é o de que é preciso crescer para depois distribuir porque não há como repartir renda numa economia em recessão. Não tem fundamento?

Piketty: Os países mais ricos do mundo enriqueceram porque aceitaram melhor repartir. Todos os países desenvolvidos, Estados Unidos, Alemanha, Japão, França, Grã Bretanha têm impostos sobre herança que atingem as grandes fortunas e que chegam a 40%. O Japão aprovou, no ano passado, uma taxação sobre a renda dos mais ricos de 50%. Não são números mágicos, eles têm razão de ser. O que surpreende é que o Brasil mantenha seu imposto sobre herança em 4%. Isso é parte de uma cultura egoísta que precisa ser combatida.

Valor: Há muito se debate no Brasil sobre os limites do investimento em educação como meio para se reduzir a desigualdade. Quais são esses limites em sua opinião?

Piketty: A difusão da educação é a politica mais importante para a redução das desigualdades. Não tenho nenhuma dúvida em relação a isso. É nesta difusão que se observa uma redução de desigualdades permanente. Isso aparece tanto nas análises dos países quanto nas análises comparativas. Exige um grande esforço fiscal por parte do Estado, mas é preciso que esse investimento em educação seja usufruído por todos. Esse investimento não pode resultar em mais concentração de renda, em um sistema em que os mais pobres paguem mais que os ricos pelo acesso à educação.

Valor: As desigualdades cresceram na Europa e nos Estados Unidos à medida em que esses continentes perderam participação no comércio mundial, sobretudo em relação à Ásia. É possível reequilibrar a renda na Europa e nos Estados Unidos sem que uma repartição do comércio mundial ainda mais ampla, com a inclusão da América Latina e da África, esteja ameaçada?

Piketty: É possível, mas sob a condição de que a gente mude o foco dessa globalização. É preciso ter uma mundialização que não se preocupe apenas com a liberalização do comércio. É preciso introduzir nesses tratados internacionais medidas de justiça fiscal, social e diplomática. Não se pode, de um lado, ter conferências internacionais proclamando harmonia global e, por outro, a assinatura de tratados comerciais como aqueles recentemente assinados entre Estados Unidos, Europa e Canadá, que passam completamente ao largo de questões de justiça fiscal e social. Não chegaremos a lugar algum enquanto os propósitos redentores ficarem limitados às declarações e, quando fazemos tratados para valer, estes venham embutidos com sanções. É um jogo de faz de conta. É preciso liberalizar o comércio, mas, no primeiro capítulo desses tratados, é preciso taxar a emissão carbono e fazer justiça fiscal. Concretamente, isso significa estabelecer objetivos verificáveis a serem atingidos pelas multinacionais em todo o mundo, nos EUA, na Europa e no Brasil. Há uma grande resistência em relação a isso, alega-se muita complexidade para se colocar em curso o estabelecimento de metas verificáveis, mas não é nada complicado. Os tratados de liberalização de comercio também são complexos e nem por isso deixam de ser feitos. Só assim a globalização deixará de ser a simples liberalização de mercadorias que tem que tem provocado o recrudescimento de nacionalismos e do protecionismo.

Valor: O senhor tem sustentado que a crise de 2008 é, em grande parte, resultado da ausência de uma boa regulação. Quase dez anos depois, constata-se que, além de uma boa regulação, a crise não puniu os responsáveis pela crise. Que papel o senhor acha que o judiciário deve ter nessa regulação?

Piketty: O balanço desses dez anos mostra que o mundo falhou em fazer uma boa regulação financeira e econômica mundial. O paradoxo dessa crise é que a instabilidade monetária atinge economias importantes no mundo inteiro. Os verdadeiros responsáveis, de fato, não pagaram o que deveriam. Perdeu-se a oportunidade de mudança. Mas acredito que, ao fim e ao cabo, no resto do mundo cresceu a consciência de que não dá mais para esperar pelos Estados Unidos para encontrar soluções para a ordem mundial. A Europa, a China e o Brasil têm que se pôr em acordo sem esperar pelos EUA.

Em tempo: não deixe de ver também "Distribuição de renda só com guerras", e a entrevista da professora Virgínia Fontes sobre a matéria. PHA