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O MST assiste a Os Fuzis, de Ruy Guerra!

Prof Mendes: a Cultura é tão importante quanto a agroecologia
publicado 28/01/2019
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Cena de "Os Fuzis": o que você fará quando o camponês surgir com o filho morto? (Reprodução)

O Conversa Afiada reproduz texto do professor Adilson Mendes:

MST e Os fuzis


Imagine o leitor um cenário de fome em que os poderosos locais lucram com a manutenção da miséria. O povo – açoitado pelas piores formas de trabalho que não cessam de se degradar – se volta para o transe religioso como forma de superação do presente infernal. A cidade, como sempre faz para conter a turba indômita, envia sua tropa que garante o funcionamento de tal estrutura perversa. Este cenário, não se engane, leitor, faz parte do enredo de Os fuzis, filme dirigido por Ruy Guerra em 1963, e restaurado em 2013, graças ao projeto Memória Cinematográfica Para um Tempo Sem Memória, coordenado por uma cada vez mais longínqua Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, agora sob o controle da ministra Damares Alves.

Com todas as questões sociais e estéticas que mobiliza, o filme me serviu para desenvolver o curso Cinema e Lutas Sociais, ministrado em 24 de janeiro, no Assentamento Contestado da Lapa, paradigma fundamental do MST em seu processo de uso racional e científico da terra. No Assentamento, aproximadamente 150 famílias desenvolvem, há pelo menos vinte anos, uma das experiências mais inovadoras do país.

Como capta a estrutura do processo histórico brasileiro, Os fuzis foi escolhido para refletir sobre a ocupação do campo político por meio de acesso ao audiovisual. A feitura do curso me permitiu conhecer mais de perto o movimento social mais consistente do país. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, é sem dúvida o fenômeno mais democrático em vigor no Brasil de hoje. Por isso mesmo, ele é tão perseguido pelos atuais donos da morte. O movimento é complexo e contraditório, como toda experiência humana, mas sua marca profunda de desenvolvimento da coletividade, do bem comum, em que cada um respeita e partilha diariamente dinâmicas rigorosas de trabalho braçal e de reflexão crítica, lança por terra o preconceito difundido contra esse raro espaço de exercício público da razão no Brasil.

O preconceito generalizado que fala em “invasores de propriedade” não se sustenta já nos primeiros instantes de contato com o assentamento de Contestado da Lapa, próximo à tão retrógrada Curitiba que, nas últimas eleições, escolheu em peso apostar na irresponsabilidade civilizacional retrógrada.

Em minha rápida visita, cruzei com ocupados estudantes da Escola Latino-Americana de Agroecologia que, mesmo concentrados em suas tarefas, me ajudaram a constatar o alto nível de desenvolvimento das pesquisas da escola, uma instituição de altos estudos científicos, sempre com grandes cursos e personalidades que se dispõem a descer da torre de marfim para aprender e ensinar com o povo do campo. Um novo tipo de ensino surge nas fileiras desta escola. Uma escola infantil e outra para o ensino médio formam as instituições de ensino do local.

Como foi tocante ouvir uma camponesa discorrer sobre a necessidade de superação do machismo dentro do próprio movimento que, por estar inserido na sociedade, não está imune ao preconceitos raciais e de gênero. Impressiona a espontaneidade com que o velho Bil das Meninas bate no peito para enumerar as aptidões técnicas de cada uma das quatro ou cinco filhas. E dona Rosinha com sua incrível capacidade de gerenciar o posto de saúde local sem se ausentar das reuniões decisivas dos diversos coletivos, que formam o assentamento consolidado depois de 20 anos de prática e formação. Todos muito falantes e expressivos, cada um com os próprios anseios e desejos, buscando a liberdade para decidir sobre a própria vida e colaborar com a coletividade. Nada de rostos fixos e sem expressão como em Os fuzis. Nesta experiência real, quem permaneceu com as feições opacas e perplexas foi o citadino que vos escreve.

O antigo casarão colonial da velha fazenda do Barão de Serro Azul, hoje desapropriada, deu lugar a um centro cultural dinâmico e extremamente cuidado por militantes orgulhosos do trabalho paciente de restauro do espaço. A programação é plural, abrange obras plásticas, filmes e peças de teatro com ênfase na questão social. Nenhum centro cultural no Brasil é tão vivo como este do assentamento Contestado da Lapa, nem mesmo as higiênicas e sofisticadas unidades do Instituto Moreira Sales, onde o visitante, por mais que lave as mãos, permanece sempre com a sensação pesada do sangue dos oprimidos pelo interesse financeiro. Os vestígios históricos da mão-de-obra escrava no local mobilizaram estudos arqueológicos, que culminarão na construção de um memorial do trabalho no campo. Contra o esquecimento produzido na cidade, o MST contrapõe sua História dos vencidos.

A cultura no MST é tratada com a mesma seriedade com que o movimento se volta para os mais sofisticados experimentos de agroecologia, cujos avanços no plantio do milho, do arroz e da mandioca colocam o movimento no século XXI.

Em 2019, Os fuzis do poder estarão voltados contra a capacidade de inovação do ensino no campo e a ampliação de experiências tão bem sucedidas como a do assentamento do Contestado da Lapa. Diante deste cenário, qual será a vossa opção, hipócrita leitor, meu igual, meu irmão?

Todos os anos, o MST vai às ruas para reclamar seus mortos, reivindicar seus direitos e se comunicar diretamente com a sociedade. Com a crescente onda de degradação da sociedade e de suas instituições espera-se um cenário sombrio. E quando os conflitos se acirrarem e o camponês surgir com um filho morto nos braços, qual será vossa atitude? Permanecer atônito enquanto Os fuzis prevalecem? Indignar-se apenas sentimentalmente como o personagem urbano e esclarecido do filme de Ruy Guerra?


A entrada do assentamento Contestado, em Lapa-PR (Créditos: Pedro Eloi


A comunidade do Contestado é referência em agroecologia (Reprodução: MST)


O MST realiza trocas de experiências com moradores das comunidades no entorno do assentamento (Créditos: Franciele Petry Schramm/Mídia Sem Terra)


Créditos: Ana Luiza Cordeiro/CEFURIA

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