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Waldir Pires vs. Lincoln Gordon

O Golpe de 64 e a Lei de Remessa de Lucros
publicado 29/11/2016
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O Conversa Afiada publica texto de Emiliano José, jornalista e ex-Deputado Federal e Estadual pelo PT da Bahia:

Segundo semestre de 1963.

Waldir Pires, ao chegar à Consultoria-Geral da República, da qual era titular, recebe uma informação de seu chefe de gabinete, Hélio Oliveira:

-A embaixada dos EUA, na verdade o encarregado de negócios, o procura desde manhã. Está querendo falar. Disse a quem ligou, e ligou já pela terceira, quarta vez agorinha, que dentro de pouco tempo o senhor estaria aqui.

-E o que pretendia? – indaga Waldir.

-O recado era direto: o embaixador está precisando enormemente falar com o Consultor-Geral da República, e o convida para tomarem um drinque na embaixada americana às 17 horas.

Waldir não gostou.

Achou desrespeitoso, estranho e inaceitável aquele tipo de convite, quase uma determinação, manias do Império:

-Ligue para o encarregado de negócios. Informe-o que acabei de chegar. E que se o embaixador tiver alguma coisa importante para falar comigo, às 17hs eu o receberei. No meu gabinete. Tomaremos um café aqui.

Às 17hs, britanicamente, o embaixador Lincoln Gordon anunciou-se. E foi recebido por Waldir.

Waldir era professor da Universidade de Brasília. Não deixara a atividade docente, apesar do volume de tarefas no governo.

Gordon havia sido professor da Universidade de Harvard, e iniciou a conversa pelos flancos, enveredando por discussões acadêmicas. Queria compreender como Waldir conciliava as tarefas administrativas com as universitárias.

Waldir deixa a conversa correr. Sabia: aquele não era o ponto.

Explica ao embaixador que não era tarefa fácil conciliar as duas tarefas. Implicava uma jornada de trabalho de mais de 14 horas. Comia de marmita na própria Consultoria-Geral da República. Uma comida especial, sempre preparada com muito carinho por Yolanda, sua mulher.

Gostava de ambas as tarefas.

-O nosso País precisa desse esforço – disse.

Discorreu brevemente sobre a Universidade de Brasília, sobre o desenho novo, arrojado feito por Darcy Ribeiro para ela. Pensada como um laboratório de pensamento e reflexões sobre a construção nacional.

- Em Harvard, isso não seria possível – argumentou Gordon.

Waldir contraditou:

-Harvard é Harvard, embaixador, a mais antiga instituição de ensino superior dos EUA, e da área privada. Se a capital ainda fosse no Rio de Janeiro, não haveria necessidade disso. Se fosse em São Paulo, ou outra cidade mais consolidada... Mas, Brasília é Brasília. E a UNB precisa de mim. Ainda não tem quase ninguém. O esforço de colaboração e de trabalho é enorme para todo mundo. Ninguém aqui pode ter o tempo todo organizadinho e descuidar de todos esses deveres, essenciais para estruturar os serviços de uma capital tão nova e essencial, como Brasília.

O embaixador, surpreendido, escutava atento aquele jovem entusiasmado:

-O que é a Universidade de Brasília, onde dou aula de Direito Constitucional e coordeno a área de Direito? Deve ser, e é, precisa ser, na atual fase do Brasil, o grande laboratório para pensar o Brasil, refletir sobre os diversos desafios que temos pela frente, ser um grande instrumento à disposição do presidente da República e do governo. Ao mesmo tempo, deve ser a indicação de como nós poderemos, ou não, construir um País autônomo, um País em crescimento que ajude a derrubar essa estrutura extraordinariamente injusta que prevalece no mundo contemporâneo. Isso é Brasília, isso é a Universidade de Brasília. Muito diferente de Harvard.

O embaixador, ouvindo. Sem pressa.

Waldir agora já olhando de soslaio para o relógio, preocupado com seus afazeres.

De repente, ultrapassada a demorada discussão sobre Harvard e UNB. Waldir é quase que admoestado por Gordon:

-Eu fiquei surpreendido que o senhor tivesse, como Consultor-Geral da República, homem do primeiro escalão do governo, ido a Salvador fazer uma palestra no Primeiro Seminário Estudantil do Mundo Subdesenvolvido, uma reunião que pretendia uma reformulação completa das relações atuais do mundo. Esse encontro, esse Congresso do Terceiro Mundo, contou com uma fala feita pelo senhor na Reitoria da Universidade Federal da Bahia.

-Waldir se irritou:

-É verdade. E qual é o problema?

-É que...- Gordon tentou replicar, e Waldir não deixou sequer que ele completasse o raciocínio:

-O Brasil tem que pensar a humanidade, e dialogar com a juventude de todo o mundo. A juventude tem que participar da construção de sociedades que acolham os seres humanos. Que acolham todos os cidadãos. Fui lá, sim. Para minha honra e prazer.

Gordon reagiu:

-Mas, aquela reunião é vista como um movimento de comunistas!

-Não tem nada disso. Ali se tratou do destino do Brasil e do mundo, com a participação da juventude. – respondeu Waldir, alteando a voz.

O Primeiro Seminário Estudantil do Mundo Subdesenvolvido realizou-se em Salvador, de 7 a 14 de julho de 1963. Organizado pela União Internacional dos Estudantes, União Nacional dos Estudantes (UNE) e União dos Estudantes da Bahia (UEB), o encontro reuniu milhares de jovens da Bahia, do Brasil, e de várias partes do mundo.

O secretário-geral foi Sérgio Gaudenzi, presidente da UEB, que mais tarde será secretário-geral do Ministério da Previdência e secretário da Fazenda do governo da Bahia nas gestões de Waldir. A reunião foi aberta pelo governador Lomanto Júnior, e contou com as presenças do ministro da Educação, Paulo de Tarso, e do presidente da UNE, Vinicius Caldeira Brandt. Inscrevia-se no quadro geral de luta contra o colonialismo e o imperialismo.

Seria este o ponto? – Waldir ainda se perguntava. Um embaixador não viria conversar com ele apenas por isso.

Gordon tomou mais um cafezinho, e aí chegou ao ponto:

-Os jornais todos noticiaram que o presidente da República acaba de enviar para o senhor o decreto que regulamenta o controle de investimentos de capitais estrangeiros e de remessa de dividendos ou de lucros para o exterior. E eu queria conversar sobre isso. É que...

Waldir interrompeu-o bruscamente:

-Isso eu não converso com o senhor!

Acrescentou:

-Não converso com o senhor. Não converso com o embaixador da Inglaterra. Nem com o da União Soviética. Ou da França. Não converso com embaixador nenhum.

Gordon, perplexo com a ousadia.

Homem experimentado, nunca havia enfrentado uma reação como aquela ao propor o que para ele era uma simples conversa.

Simples, para ele.

Não para Waldir.

- Esta é uma conversa que eu terei, exclusivamente, apenas e tão somente, com o presidente da República, com mais ninguém. – acrescentou.

Completou:

-Se o senhor quiser, eu telefono agora para o gabinete do presidente, dizendo do seu interesse em conversar com ele.

Os EUA, na ocasião, eram o país com maior volume de investimentos no Brasil.

- É absolutamente natural que o senhor queira saber que rumo as coisas vão tomar. Mas, essa é uma conversa que não será comigo.Trata-se, para mim, de assunto de reflexão interna do meu governo. A mim, me incumbe a tarefa de falar ao presidente, dar-lhe a minha opinião, esclarecer-lhe as dúvidas, apontar o que me parece conveniente à Nação.

O embaixador levantou-se, empertigou-se, entre desapontado e irritado, esticou o braço, despediu-se de Waldir com um forte e rápido aperto de mão:

-Muito obrigado!

Deu meia-volta, e retirou-se.

Não desistiu.

Naquele mesmo segundo semestre, esteve várias vezes com Goulart com o objetivo de interferir na regulamentação da lei de remessa de lucros e presença de capitais estrangeiros no Brasil.

Waldir acentua os cuidados de Goulart: apesar das pressões, nunca pressionou mais fortemente no sentido de quaisquer mudanças de substância no que Waldir elaborara. Cercava, perguntava se era possível mudar isso ou aquilo, e às negativas de Waldir, aceitava tranquilamente. O decreto acabou como originalmente pensado na Consultoria-Geral da República.

Goulart, quando a lei foi aprovada, em 1961, promulgada em 1962, resolveu nem vetar, nem promulgá-la. Não se sentia forte para tanto. Deixou o prazo constitucional expirar de modo que coubesse à Mesa do Congresso Nacional promulgá-la.

O decreto de regulamentação, contra o qual se batia Gordon, foi assinado no dia 20 de janeiro de 1964.

Waldir fala com entusiasmo da medida:

-Aquilo era parte do nosso compromisso político, compromisso da nossa geração, o de ter o controle dos investimentos estrangeiros no País.

Waldir tem a “Carta-Testamento” de Getúlio na ponta da língua, amiúde recorre a ela. O controle dos investimentos estrangeiros constitui parte essencial do documento deixado à posteridade, no momento em que Getúlio saía da vida “para entrar na história”.

A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano.

Está lá, deixado escrito por Getúlio.

Para ninguém esquecer.

Waldir assegura: Goulart e os seus próximos nunca esqueceram.

Eram fiéis à Carta-Testamento.

O que se constatava?

- Havia empresas estrangeiras que chegavam ao Brasil, registravam, por exemplo, 20 milhões de dólares na Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), o equivalente ao Banco Central de hoje. Depois, os negócios evoluíam, elas cresciam enormemente, o capital da empresa crescia, e as remessas para o exterior eram feitas em cima desse capital aumentado exponencialmente, sem que tivesse havido qualquer nova entrada de dólares no País.

Waldir prossegue:

- Eram fraudes sobre fraudes, lembradas por Getúlio, que continuavam a drenar recursos da Nação. O acréscimo de capital ocorrido durante o desenvolvimento da empresa no Brasil é nacional e, portanto, não era possível fazer remessa de lucros sobre esse montante. Era preciso distinguir o que fora capitalizado internamente do que significasse entrada real de dólares do exterior. Essa distinção foi feita no decreto. O capital estrangeiro só remeteria lucros para fora do País sobre o capital que tivesse efetivamente entrado no Brasil, e não sobre o capital da empresa, muitas vezes maquiado, elevado para cima artificialmente, de modo a assegurar o envio de milhões de dólares ao estrangeiro.

À distância, pode-se dizer que Goulart e sua equipe estavam à beira de um golpe, e seguiam a tomar medidas ousadas.

Melhor tenha sido assim, caíram lutando!

Cumprindo o programa que defendiam!