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Negociante é o vice "Ministro" da Saúde

"Ministro" foi financiado por planos de saúde!
publicado 10/07/2016
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O Conversa Afiada reproduz reportagem de Conceição Lemes, publicada pelo Viomundo:

Privataria na Saúde: “Governo Temer entrega o maior orçamento do Ministério da Saúde a administrador de negócios”

Sete secretarias compõem o Ministério da Saúde. A principal e maior é a de Atenção à Saúde (SAS), que cuida das verbas da assistência.

A SAS é responsável por aprovar e pagar todo o recurso federal que vai para estados e municípios custearem a rede assistencial do Sistema Único de Saúde (SUS).

Financia, assim, parte de todos os serviços de saúde.

Por exemplo:

*Transplantes de órgãos nos grandes hospitais.

*Atendimento de urgência nos prontos-socorros, Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs) e SAMU.

*Equipes de Saúde da Família e agentes comunitários que atendem nas Unidades Básicas de Saúde (UBS).

*Saúde bucal, mental, de idosos, crianças, mulheres, pessoas com deficiência, pacientes crônicos, indígenas, de usuários de álcool e outras drogas.

*Acesso a procedimentos e medicamentos caros, consultas especializadas e exames, tratamento de câncer, diabetes, hipertensão.

*Protocolos para uso de medicamentos

*Instituto Nacional do Câncer (Inca), Instituto de Traumatologia e Ortopedia (Into) mais os sete hospitais federais do Rio de Janeiro, pelos quais é responsável.

*Projetos para construção e reforma de UBS, UPA, Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).

A SAS ainda é responsável por:

*Processar as emendas parlamentares relacionadas à Saúde. Somente em 2015 a SAS recebeu 3.879.

*Certificar as entidades filantrópicas, que com esse título terão isenções de tributos.

“A SAS possui o maior orçamento do Ministério da Saúde, fica com cerca 70% dos recursos da saúde do governo federal”, observa a pesquisadora Claudia Travassos, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Icict/Fiocruz).

Em 2015, o orçamento executado do Ministério da Saúde atingiu R$106 bilhões. Os recursos empenhados pela SAS somaram R$ 68,5 bilhões.

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 Pois a SAS acaba de ser entregue a Francisco de Assis Figueiredo, indicação do PP de Minas Gerais, com o aval do PSDB de lá.

Ou seja, do partido do ministro interino da Saúde, Ricardo Barros, licenciado da Câmara dos Deputados e do cargo de tesoureiro do PP.

A nomeação de Francisco Figueiredo saiu no Diário Oficial da União de 28 de junho de 2016.

Graduado em Administração de Empresas, com atuação no setor hospitalar privado de Minas Gerais, ele é apresentado no portal do Ministério da Saúde como alguém “com larga experiência em gestão hospitalar” e que “foi presidente da Federação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos de Minas Gerais”:

Francisco Figueiredo atua há mais 20 anos na área da saúde com larga experiência em Gestão Hospitalar. Foi diretor do Hospital Maternidade Therezinha de Jesus em Juiz de Fora durante três anos, presidente da Federação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos de Minas Gerais, superintendente Geral do Hospital da Baleia (Belo Horizonte) e Gestor Administrativo do Hospital Municipal Odilon Behrens.

Em seu perfil atualizado na rede social Linkedin (veja abaixo), salta à vista a repetição do termo “negócios”, próprio de alguém comprometido com a privatização da saúde, como demonstra a sua trajetória profissional.

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 Curiosamente, na sua nova função de secretário da SAS, Francisco Figueiredo terá a função de distribuir recursos para setores com os quais tem fortes ligações.

Não é à toa que o seu perfil chamou a atenção de Lígia Bahia, Mário Del Poz e Claudia Travassos.

Lígia é professora adjunta do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

Dal Poz, professor associado de Medicina Social, também da UERJ. De 2002 a 2012, coordenou o programa de governança e informação de recursos humanos na área da saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS), em Genebra, Suíça.

Claudia, como dissemos no início, é da Fiocruz.

No momento, os três trabalham numa mesma pesquisa, financiada pelo CNPq e que envolve várias instituições, sobre o setor privado da saúde no Brasil.

Com base no que estão estudando sobre as instituições pelas quais passou o novo secretário da SAS, eles alertam: “Francisco Figueiredo na SAS é como colocar a raposa na gestão do galinheiro”.

Afinal, o que está por trás dessa indicação do PP, apoiada pelo PSDB?

Que relação tem com as investidas do ministro interino da Saúde contra o SUS e a favor do setor privado?

E a entrega do governo Temer aos planos privados de saúde?

Conversamos, então, com esses três pesquisadores que têm se dedicado a estudar quem são os atores do setor privado da saúde, seus interesses, formas de atuação e relação com os governos.

Viomundo — O que acharam da nomeação do administrador de empresas Francisco de Assis Figueiredo para a SAS?

Lígia Bahia: Não bastasse o ministro não ser da área de saúde [é engenheiro], agora o segundo cargo mais importante do Ministério da Saúde também não é. É alguém, cujas qualificações técnicas e administrativas estão longe do adequado, considerando as inúmeras responsabilidades da Secretaria de Atenção à Saúde. Causa estranheza o desnivelamento de seu currículo em relação ao que se exige para dirigir a SAS.

Viomundo – O perfil inadequado é um traço peculiar não só do interino da Saúde, como de todo o governo Temer.

Lígia Bahia: Exato. Além do ministro e do seu substituto natural não serem de profissionais de saúde, ambos possuem uma visão extremamente limitada e parcial sobre o SUS.

O primeiro foi prefeito de Maringá, município de médio porte e sua família se destaca por possuir membros na Assembleia Legislativa e no governo do Paraná. Sua esposa é a vice do governador Beto Richa (PSDB).

O segundo está saindo diretamente do setor privado da saúde para cuidar do SUS. É um administrador de “negócios”. Suas atividades pregressas foram analisadas por pesquisa, do qual fazemos parte, sobre privatização da saúde. Em condições normais de temperatura e pressão, ele não poderia de jeito nenhum exercer uma função de tamanha relevância pública.

Viomundo – Essa nomeação para a SAS revela o quê?

Lígia Bahia — Nessa temporada de fechamento de pacotes completos de espaços públicos a partidos políticos, a entrega da SAS também ao PP [mesmo partido do ministro interino] mostra que não se vê cara, mas sim a filiação e a garantia de votos no Senado, para aprovar o impeachment definitivo da presidenta Dilma Rousseff.

Viomundo – A indicação tem a ver com o tamanho do orçamento da SAS?

Claudia Travassos — Com certeza. A SAS possui o maior orçamento do Ministério da Saúde, fica com cerca 70% dos recursos da saúde do governo federal. Mais do que isso. No orçamento dos ministérios, o da Saúde é o segundo maior. Pois a SAS sozinha movimenta recursos que são pouco menores ao de ministérios, como o da Educação e da Defesa.

Viomundo – Com tamanho orçamento, o secretário da SAS tem muito poder, não é?

Cláudia Travassos — Muito, mesmo!

Viomundo – O que faz a SAS?

Claudia Travassos — A função principal da SAS é organizar a assistência à saúde do SUS. Cabe à SAS definir o valor dos procedimentos da tabela do SUS e, em especial, organizar a alta complexidade que tem gestão mais centralizada do que a média complexidade e a atenção básica.

No caso da alta complexidade, a SAS que autoriza pagamentos a prestadores de serviços, compra medicamentos de alto custo, além de definir valores dos procedimentos médicos. A SAS é também responsável por funções importantes da atenção farmacêutica e da definição das diretrizes clínicas a serem adotadas pelo SUS, entre outras atribuições.

Viomundo – Gostaria que exemplificasse o que faz parte da atenção básica, da média e alta complexidade.

Claudia Travassos –A atenção básica é organizada pela Estratégia da Saúde da Família de modo descentralizado, disponível no local mais próximo onde as pessoas vivem. Foi concebida para ser a principal porta de entrada e de comunicação com a Rede de Atenção à Saúde do SUS.

Os problemas de saúde que não podem ser resolvidos pelos serviços de atenção básica devem ser encaminhados para ambulatórios ou hospitais especializados de média complexidade (por exemplo, cirurgia de catarata) e alta complexidade (por exemplo, câncer e transplantes), que se diferenciam pelo grau de incorporação tecnológica envolvido no cuidado.

As transferências de recursos federais para média e alta complexidade no Brasil somam cerca de três vezes os recursos transferidos para atenção básica.

Viomundo – O perfil do senhor Francisco Albuquerque à frente da SAS a preocupa?

Claudia Travassos – Ele não tem experiência na administração pública nem na gestão do SUS. Tem fortes ligações com setores privados, que, por sua vez, têm interesse nos recursos públicos e nas áreas de atuação da SAS. Ou seja, colocar à frente da SAS alguém com o perfil dele é colocar a raposa na gestão do galinheiro.

Viomundo – Concorda, doutora Lígia?

Lígia Bahia – Totalmente.

Viomundo – E o senhor, doutor Mário?

Mário Dal Poz – Seguramente.

Viomundo: Qual a relação de Francisco Albuquerque com o setor privado?

Mário Dal Poz – Como a Lígia comentou, a nossa pesquisa, por coincidência, tem um estudo de caso que expõe o imenso emaranhado das relações entre o público e o privado, envolvendo a trajetória das entidades ligadas ao senhor Francisco de Assis Figueiredo.

Apresentado como presidente da Federação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos de Minas Gerais, ele foi diretor do Hospital Maternidade Therezinha de Jesus, em Juiz de Fora.

Essa maternidade foi fundada em 1926 por dois médicos da própria cidade. Anos depois, ela ampliou seu atendimento com recursos doados pelo governo do estado de Minas Gerais.

O Hospital Maternidade Therezinha de Jesus possuía genuína vocação pública. Tanto que, ainda no final dos anos 1970, fez convênio com a Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora, para o ensino da Obstetrícia. Mas em 2005, portanto há pouco mais de dez anos, teve início a sua privatização.

Viomundo — Como isso ocorreu?

Mario Dal Poz – Em 2005, a Maternidade Therezinha de Jesus passou a ser cogerido por uma faculdade privada – a Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora – , que é conhecida como Suprema (FCMS/JF).

Aí, a maternidade se transformou em hospital geral e mudou de nome. Passou de Hospital e Maternidade Therezinha de Jesus para HMTJ, pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos.

Já a Suprema é uma instituição de ensino superior privada com cursos de Medicina, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia e Odontologia. Não para por aí.

O HMJT foi certificado como Hospital de Ensino e, ao mesmo tempo, firmou convênio, inicialmente de R$5 milhões, com a prefeitura de Juiz de Fora e a Secretaria de Estado de Saúde, para a ampliação da capacidade hospitalar.

Viomundo — Quer dizer, o novo secretário da SAS participou de todo esse processo de privatização?

Mario Dal Poz – Sim. E tem mais. O HMTJ foi credenciado pelo Ministério da Saúde para atendimento de alta complexidade em cirurgia bariátrica e gestantes de alto risco. E foi, ainda, qualificado como Organização Social de Saúde (OSS), com área de atuação em Maternidade e UPA 24 horas.

Com isso, foi possível ao HMTJ participar de processos de chamada pública no Estado do Rio de Janeiro, passando a gerenciar totalmente quatro hospitais: o Estadual da Mãe de Mesquita, o da Mulher Heloneida Studart, o Estadual Vereador Melchiades Calazans e o Estadual dos Lagos.

Além desses hospitais, passou a gerenciar também os leitos de UTI do Hospital Municipal Albert Schweitzer e as Unidades de Pronto-Atendimento de Botafogo, Copacabana, Tijuca e Jacarepaguá.

Viomundo — Nessa mistura do público com o privado, o público sai sempre perdendo?

Claudia Travassos – A questão é que há uma crescente privatização da saúde no Brasil na contramão da Constituição de 1988. A nossa hipótese é de que o mercado da saúde em suas dimensões industriais, comerciais ou de prestação de serviços, é politicamente instituído. A execução das políticas públicas tem envolvido grande disputa pelos recursos públicos. Atualmente, mercado privado de saúde no Brasil inclui os hospitais, planos de saúde, organizações sociais, empresas farmacêuticas, entre outras.

Viomundo – Na pesquisa de vocês, o que representa o HMJT?

Claudia Travassos – Trata-se de um caso exemplar da atual metamorfose empresarial associada ao entroncamento entre o público e o privado em razão das sucessivas e diversificadas transferências públicas para uma instituição, que é filantrópica e, ao mesmo tempo, se desdobra em faculdade privada e OSS.

É uma configuração extremamente versátil e seus relacionamentos políticos com os governo municipal, estadual de Minas Gerais e órgãos federais e a extensão de atividades para a cidade do Rio de Janeiro expressam um novo padrão de capilarização das relações do público e do privado.

É essa a argamassa que se usa fartamente para privatizar a saúde com impacto nos gastos públicos, na efetividade e na equidade bastante questionáveis. Estávamos às voltas com os achados da nossa investigação quando soubemos que um dos organizadores do HMTJ havia sido nomeado para a Secretaria de Atenção à Saúde. Sinceramente, nos surpreendeu. Vamos estudar mais.

Viomundo — Ou seja, usando o discurso da suposta ineficiência do público, setores privados tiram mais dinheiro do público para os seus negócios?

Claudia Travassos – Sim. Misturam-se o público (como financiador) e o privado (como receptor) de dividendos, inclusive políticos.

Viomundo — Considerando que o senhor Francisco Albuquerque passou por instituições privadas e foi até uma semana atrás presidente da Federação das Santas Casas de Minas Gerais, o que ele fez nesses locais?

Mário Dal Poz – Não sabemos os detalhes do que ele fez. O nosso estudo acompanhou não a pessoa física Francisco Albuquerque, mas a movimentação das entidades às quais ele esteve vinculado. Agora, em função da nova condição profissional à frente da SAS, vamos aprofundar a pesquisa sobre as instituições pelas quais ele passou.

Viomundo — Essa nomeação segue um padrão do governo interino?

Lígia Bahia – A história não começou agora na escolha do secretário da SAS. Na verdade, o modelo foi ensaiado anteriormente, na gestão do então ministro Marcelo de Castro (PMDB-PI). Mas agora há novidades, há forças políticas mobilizadas e novos estilos de relacionamento entre executivo e legislativo.

Viomundo — Explique melhor a diferença de estilo de relacionamento.

Ligia Bahia – O atual ministro e o Ministério da Saúde tornaram-se completamente aderidos às demandas e aos interesses dos parlamentares.

Agora, deputados participam de reuniões técnicas com autoridades ministeriais e diretores de programas e unidades de Saúde. Tenta-se revogar as necessárias mediações entre a racionalidade técnica e a política. Com isso, são atendidos pleitos políticos particulares, que tenderiam a ser vetados, se fossem baseados nas normas universais do SUS.

Viomundo — Em que medida uma pessoa com o perfil do novo secretário da SAS vai interferir no atendimento dos usuários do SUS?

Lígia Bahia — Pelo rol de atividades da SAS, são muitas as políticas e ações que implicam no atendimento a usuários. Se houver má gestão ou atenção a interesses privados, várias dessas atividades podem ser prejudicadas.

Viomundo — O que fazer, agora?

Lígia Bahia — As instâncias de participação social, Conselho Nacional de Saúde e Ministério Público terão de acompanhar com muito mais atenção os movimentos da SAS nesta gestão.