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Vem aí um Código Penal fascista !​

Jean Wyllys, cuidado ! Querem te pegar !
publicado 14/05/2015
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O Conversa Afiada reproduz artigo de Rogerio Dultra dos Santos, Professor Adjunto do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense:


Inovando no retrocesso: o “novo” Código Penal de amanhã



Por Rogerio Dultra dos Santos

O projeto de novo Código Penal (PLS 236/2012) que será levado a plenário no Senado Federal, acolhido sob o signo de novidade, sofreu um conjunto massivo de intervenções que o transformou em uma legislação de exceção. Inova no retrocesso.

O seu texto é o mais reacionário da história republicana na matéria criminal. Ele radicaliza os elementos fascistas do Código de 1941, restringe as inovações da reforma de 1984 e – dentre outros inúmeros absurdos – é coroado com o infame art. 21, que elimina o princípio da legalidade. De quebra, incorpora a barganha e a delação, instrumentos medievalescos que estimulam o arbítrio e a chantagem institucionais.

O projeto radicaliza em direção ao fascismo porque a sua orientação geral é a de fragilizar o controle e os limites normativos em prol de uma grande discricionariedade atribuída às autoridades policiais e judiciais. E se a atividade repressiva não está restringida pela lei, o abuso se torna seu modus operandi.

Ele igualmente restringe as inovações da parte geral do código atual e limita os parcos avanços da lei de execução penal. Um exemplo gritante é que a cela individual deixa de ser uma regra obrigatória – obrigatoriedade que, inclusive, constrange o poder público a reformar o sistema carcerário –, e se transforma em mera meta de política carcerária.

Mas uma das alterações mais graves é a inserção do conceito de “início da execução” do crime. Este simples artigo altera toda a lógica de funcionamento do direito penal como uma garantia capaz de controlar e limitar a atividade repressiva.

Por este artigo do projeto, o planejamento do crime – o que quer que isto signifique – e os atos preparatórios à realização do crime propriamente dito passam a ser considerados, em conjunto, “início de execução”. Assim, o sujeito começa a matar alguém (“Art. 121. Matar alguém”) antes mesmo de começar a ação de “matar”.

Este malabarismo semântico, na prática, significa o fim da garantia de que só pode haver punição quando se viola o estabelecido em lei escrita (“Art. 1º. Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”).

Veja-se a redação proposta pelo art. 21: “Há o início da execução quando o autor realiza uma das condutas constitutivas do tipo ou, segundo seu plano delitivo, pratica atos imediatamente anteriores à realização do tipo, que exponham a perigo o bem jurídico protegido.” (grifo nosso)

A segunda parte do caput do artigo autoriza a persecução penal por condutas não descritas na lei penal e mesmo sem lesão ao bem protegido. Um indivíduo pode ser punido por homicídio tentado, por exemplo, caso o seu projeto de construção civil contenha erro de cálculo que possa expor a risco de vida.

Ora, numa primeiríssima vista pode até parecer interessante para alguns a ideia de que os engenheiros incompetentes, que hoje só podem ser processados quando há desabamentos, sejam criminalizados por seus projetos.

Mas esta ideia não é apenas equivocada. Há não somente graves erros, como nefastas conseqüências na proposta.

O primeiro erro é lógico. Pelo sistema atual e, inclusive, pelo disposto num artigo do próprio projeto, o art. 19, o crime só ocorre de fato, quando todos os elementos – a realização da conduta descrita no texto e a lesão ao bem protegido – estão presentes: “Diz-se o crime: I –consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal.”.

Apesar do desejo punitivo de alguns, só há homicídio quando um sujeito MATA alguém. E só há tentativa de homicídio punível quando, depois de iniciada a EXECUÇÃO da AÇÃO de matar alguém, a morte não se consuma “por circunstâncias alheias à vontade do agente”.

Desta forma, ainda segundo a lógica atual, a mesma do art. 19 do projeto, o sujeito só pode ser processado por homicídio ou por tentativa se ele se torna sujeito ativo do verbo MATAR, se a sua conduta se adéqua ao núcleo verbal ativo do caput do artigo penal (no caso, “matar alguém”).

Diferentemente do que diz o novo art. 21 do projeto de código, portanto, o “início da execução”, na técnica penal moderna, está vinculado ao conceito de fato típico, ou seja, de uma conduta descrita como inadequada pela legislação penal.

Com a redação do art. 21, o projeto de código pretende relativizar os limites que a lei penal estabelece: não vai se processar somente os que são acusados de violar a lei, mas aqueles sob os quais pesar a suspeita de terem PLANEJADO violar a lei, de estarem se PREPARANDO para violar a lei.

Desaparecem, assim, os limites jurídicos para investigar, processar e julgar. Qualquer um pode ser perseguido por fazer virtualmente qualquer coisa que seja interpretada pelas autoridades policiais ou judiciais como “inicio da execução” de um crime.

Esta confusão conceitual presente no projeto de código penal certamente é lógica. Mas também reflete uma disputa política pelo alcance que a repressão pode tomar com a nova legislação.

É a incorporação das “teorias do risco”, de origem assumidamente fascista, que objetivam punir o risco de lesão, o perigo, como “início da execução” e reprimir as intenções criminosas (o “plano delitivo”) antes mesmo de se transformarem em ações lesivas.

A finalidade política é a de “profilaxia social”. É limpar a sociedade dos “elementos indesejados” como já disse o Senador Fascista de Mussollini, Enrico Ferri, o maior penalista reacionário do século passado, inspiração mais ou menos assumida desta “teoria do risco”.

A questão por trás do art. 21 é que a decisão sobre a ilicitude da ação deixa de ser estritamente amparada na letra da lei e passa a ser controlada apenas pela interpretação de quem a aplica.

O flerte com o arbítrio ainda é estimulado pelo instituto da delação, da colaboração – e da conseqüente barganha – que, no projeto, se generaliza. O novo texto permite que se negocie penas e o encaminhamento do crime à justiça em troca do “arrependimento” de quem dedura. É o conhecido e funesto pacto entre o desvio e a autoridade.

Assim, na lógica da negociação, onde os fins se sobrepõem aos meios, a investigação técnica torna-se supérflua. E onde a comunidade internacional vê a atualização da legislação para o combate ao crime organizado, os Estados nacionais assistem o rigor do direito público ser suplantado pelo funcionamento silente das práticas administrativas e da burocracia judicial.

Esta é a carta branca normativa tão esperada pelos setores mais conservadores para que todo o sistema repressivo, inclusive o policial, atue sem limites legais, mas “dentro” da lei.

Para quem está assustado com a ampliação de manifestações sociais de caráter fascista e irracional, este Projeto de Código Penal é a ponta de lança para um autoritarismo que nem o Estado Novo e nem a Ditadura Civil-Militar de 1964 assumiram realizar.

Você que é gay, lésbica, trans, negro, pobre, petista, comunista, ubandista ou se enquadra em qualquer rótulo “da hora” se prepare: a reação à civilização abrirá amanhã um novo e nefasto capítulo, porque é sobre você que esta legislação está falando.

A “teoria do risco”, incorporada de forma generosa pelo projeto do “novo” Código Penal, é a irmã gêmea da teoria do Inimigo no Direito Penal. O inimigo penal deve ser, segundo os seus autores, eliminado.


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