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Cunha, Brossard e a revisão da anistia

Luiz Cláudio Cunha responde ao texto de Paulo Brossard e defende a revisão da anistia.
publicado 12/04/2014
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O Conversa Afiada reproduz artigos de Paulo Brossard e Luiz Cláudio Cunha sobre a revisão da anistia na Zero Hora:


A revisão da anistia



por Paulo Brossard*

Confesso estar impressionado, e não é de hoje, com o que me parece uma espécie de esquecimento quanto ao que foi feito, progressivamente, em matéria das instituições nacionais, estaduais e também municipais. Dirigentes partidários, administradores de mérito, parlamentares de variado prestígio, pela lei da morte ou não, foram se extinguindo sem renovação. Hoje é difícil saber quais e quantos são os ministros, e se faz necessário divulgar o respectivo curriculum vitae para saber-se de quem se trata. E o mesmo se pode dizer das representações parlamentares. Não se sabe donde vêm, nem para onde vão.

É claro que para explicar um fenômeno haverá uma pluralidade de causas, mas, para mim, uma das maiores reside no período de governo absoluto servido por uma censura absoluta. Tudo poderia ser feito e tudo veio a ser feito, sem que notícia deles chegasse sequer a uma parcela mínima da comunidade. O segredo era total. Basta dizer que, durante o tempo em que estive próximo aos acontecimentos, nunca chegou ao meu conhecimento algum dado concreto relativo a uma atrocidade, que me tivesse sido revelado, por exemplo. De outro lado, por incrível que possa parecer, ninguém estranhou que a “Constituição” ostentava a declaração dos direitos e garantias individuais, que eram excluídos pelo AI-5; em outros tempos, em casos semelhantes, não faltaram manifestações de entidades docentes ou culturais, que naquela época fora omissas.

À certa altura, a oposição passou a defender a anistia – “ampla, geral e irrestrita”, e como falasse em “anistia recíproca” o governo, irritado, proclamou que os vencedores não precisavam de perdão. Certo dia, porém, a “bomba do Riocentro” estilhaçou os segredos e num dado momento o governo percebeu que a ele também interessava a anistia e, mediante transigências, ela foi aprovada; posso dizer que sem elas, então, a anistia não seria decretada. Não foi a anistia que eu queria, mas foi a possível e que, Deus louvado, sem exagero, mudou a face do Brasil. A anistia decretada pela Lei 6.683 de 28/8/1979, agora apontada como merecedora de revisão, parece não ter sido desprezível. A meu juízo, foi necessária e benéfica, mudou a face do Brasil. A propósito, lembro que a senhora Dilma Rousseff foi por ela anistiada, e hoje é a presidente da República.

Pois se lembro dessas coisas é porque, agora, ao ensejo dos 50 anos do movimento que culminou no afastamento do presidente Goulart, começou a falar-se abundantemente em “revisão da lei de anistia”, quando, decorrido mais de um terço de século, uma unanimidade nacional se estabeleceu a seu respeito.

Ora, a anistia é de aplicação instantânea e imperativa, independente de quererem ou não seus destinatários; sua amplitude atinge até condenação criminal transitada em julgado; a que foi decretada em 28/8/1979, pela Lei 6.683, apagou a todos os que, entre setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, cometeram “crimes políticos ou conexos com eles, eleitorais...”. De modo que, o que havia deixou de existir, como se nunca houvesse existido; destarte, uma revisão da lei de anistia se assemelharia a uma anistia retroativa a deparar com o vácuo. Enfim, a anistia de 1979 anistiou.

Lamento que não possa estender-me sobre a anistia, importante e interessante. Premido pelo espaço, noto apenas que ela não se funda na Justiça, mas na temperança, no esquecimento, e, particularmente na paz, que a juízo da lei, se faça aconselhável.

* JURISTA, MINISTRO APOSENTADO DO STF




O esquecimento de Brossard



por Luiz Cláudio Cunha*

Ao criticar a revisão da Lei de Anistia da ditadura, o experiente ex-ministro do STF Paulo Brossard tropeçou neste espaço (ZH, 7 de abril): “A bomba do Riocentro estilhaçou os segredos e, num dado momento, o governo percebeu que a ele também interessava a anistia e, mediante transigências, ela foi aprovada”. Errado, ministro!

Como historiador honorário, sempre cioso sobre datas e fatos, Brossard esqueceu que o ato terrorista armado pelo DOI-Codi do governo Figueiredo aconteceu em 30 de abril de 1981 – 19 meses após a sanção da Lei nº 6.683. A anistia de agosto de 1979, ao contrário do que dizem os quartéis e suas vivandeiras, não é produto de um consenso nacional. É uma lei gestada pelo regime militar vigente, blindada para proteger seus acólitos e desenhada de cima para baixo para ser aprovada, sem contestações, pela confortável maioria que a ditadura tinha na Câmara dos Deputados: 221 cadeiras da Arena contra 186 do MDB.

Durante semanas, o núcleo duro do Planalto de Figueiredo lapidou com esmero as 18 palavras do parágrafo 1º do Art. 1º da lei, para infiltrar ali a expressão salvadora que abençoava todos os que cometeram “crimes políticos ou conexos com estes”. De forma ladina, decidiu-se que abusos de repressão eram “conexos” e, se um carcereiro do DOI-Codi fosse acusado de torturar um preso, ele poderia replicar que cometera um ato conexo a um crime político. Assim, em uma única e cínica penada, anistiava-se o torturado e o torturador – e instaurava-se o império da impunidade. A esperteza do regime foi aprovada por apenas cinco votos de diferença, 206 contra 201.

Agora, repetindo o que aqui escreveu em 2010, Brossard invoca a paz para defender a fossilização de uma autoanistia desenhada sob medida pelos quartéis: “Anistia pode ser mais ou menos injusta, mas não é a justiça seu caráter marcante. É a paz”, afirma Brossard.

Mas paz de quem, cara-pálida? Certamente não é a paz de cemitério dos mortos pela tortura, nem a paz de espírito dos parentes de desaparecidos políticos, muito menos a paz da consciência de quem sobreviveu aos suplícios e aos gritos de dor nas masmorras.

A indulgente desmemória proposta pelo ex-ministro olvida o essencial. Anistia não é esquecimento, é perdão. E não se pode esquecer o que não se conhece. Também não se pode perdoar o que não foi punido – privilégio de todos os torturadores ainda ilesos da ditadura sempre impune.

A ditadura não comporta amnésia. A injustiça nunca traz a paz.

*JORNALISTA



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