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Carta traz Garibaldi ao Brasil. O mito e suas obsessões

O repórter e historiador Gianni Carta traça um retrato surpreendente e fascinante do homem que unificou a Itália.
publicado 10/10/2013
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O ansioso blogueiro leu, gostou, e entrevistou o autor de "Garibaldi na América do Sul".

Procurou concentrar a conversa em torno da experiência de Garibaldi no Brasil.

O livro - excelente - de Gianni, porém, é muito mais do que isso.

É uma análise profunda, minuciosa, de um historiador que, de vez em quando, se oculta sob o poncho de repórter.

Com igual talento.

Para atiçar a memória, se quiser, o amigo navegante pode ler aqui.

Ao Gianni:


Por que Garibaldi lutou contra os Farrapos de Bento Gonçalves – monarquistas, terratenentes  e escravistas ? Chateados com o imposto sobre o charque – e pouco mais. O que tinham a ver com Garibaldi?
Os farrapos não tinham absolutamente nada a ver com Garibaldi. Luigi Rossetti, um dos jornalistas mazzinianos que Garibaldi conheceu no Rio de Janeiro no início de 1836, conheceu o estrategista da Revolução Farroupilha, o aristocrata bolonhês Tito Livio Zambeccari. Zambeccari e Bento Gonçalves da Silva, entre outros rio-grandenses, estavam então presos no Rio, após a derrota na batalha do Fanfa, em outubro de 1836. Rossetti e Garibaldi estavam fartos do Rio, capital conservadora do Império onde viviam como agitadores políticos e comerciantes de pasta para sobreviver. Acharam que Zambeccari, carbonário, condenado à morte na Itália em absentia como Garibaldi, lutava em uma revolução realmente republicana e separatista contra o Império brasileiro. Logo perceberam que a revolução foi iniciada porque Bento Gonçalves e as elites rio-grandenses consideravam os impostos sobre o charque e outros produtos sulistas demasiado elevados. Ademais, Garibaldi era abolicionista e anticlericalista e Bento Gonçalves e as elites rio-grandenses tinham escravos e somente católicos praticantes podiam se alistar nas tropas rio-grandenses.


Você cita Raymundo Faoro sobre os Farrapos – que ao fim e ao cabo eles queriam mesmo era se abrigar na Monarquia … Garibaldi não desconfiou sempre disso?
De fato, Faoro sustentava com razão que os farrapos queriam mesmo era impostos mais baixos sobre seus produtos – e o separatismo era apenas um pretexto para conseguirem o que queriam. E como poderia um aristocrata como Bento Gonçalves, que lutara pelo Império, virar republicano da noite para o dia? Dito isso, havia republicanos verdadeiros no meio da Revolução dos Farrapos, a mais longa no Brasil, de 1835 a 1845. Os negros que seriam libertados no caso de vitória, como os temidos Lanceiros Negros, também acreditavam no separatismo republicano. (E, no entanto, o acordo de Poncho Verde entre legalistas e farroupilhas não concedeu liberdade aos negros, somente livres com a Lei Áurea de 1888). Foi Rossetti quem logo descobriu que de republicana a revolução não tinha nada. Ele era redator-chefe do diário oficial da República Rio-Grandense, O Povo. Nas cartas que ele escrevia para o Giovanni Battista Cuneo, o outro jornalista mazziniano que Garibaldi havia conhecido no Rio mas fora viver em Montevidéu, revelam a ira de Rossetti com, por exemplo, o fato de o ministro da Fazenda de Bento Gonçalves, Domingos José de Almeida, ter vendido escravos para comprar uma tipografia para seu jornal, O Povo. Almeida mandava mexer nos textos de Rossetti, quando este falava em ideais republicanos mazzinianos. No entanto, a vasta maioria de biógrafos brasileiros de Garibaldi diz que os mazzinianos tinham uma boa relação com os rio-grandenses. Foi Rossetti quem, após ter pedido demissão de O Povo, disse a Garibaldi para ir para Montevidéu lutar na Guerra Grande (1839-1851). Após a morte de Rossetti em uma batalha no final de 1840, Garibaldi se mandou para a Montevidéu, onde o aguardava Cuneo. No final das contas, Garibaldi lutou no Rio Grande do Sul de 1838 até o final de 1840. Em Montevidéu, os exilados argentinos aliados aos unitários do presidente Rivera lutavam contra o ditador da Confederação Argentina, Juan Manuel de Rosas, aliado de uma facção federalista uruguaia. Os exilados argentinos em Montevidéu eram mais receptivos às ideias republicanas de Mazzini. Não queriam uma Argentina ditatorial e nem que o Uruguai fosse anexado à Confederação de Rosas.


Que legado a experiência farroupilha de Garibaldi deixou para gaúchos e brasileiros, que ousavam e ousam desafiar o Poder Central? Garibaldi influenciou Chimangos ou Maragatos?
Garibaldi estaria mais para Chimango, ou seja, centralizador ao lado de Júlio de Castilhos na Revolução Federalista de 1893, da mesma forma como ele esteve ao lado dos Unitários na Guerra Grande. Ele se oporia aos Maragatos federalistas assim como lutou contra os federalistas do ditador argentino Rosas. Mas Garibaldi, para responder à tua pergunta, não influenciou Chimangos nem Maragatos. O legado dele no Brasil é ter virado um ícone para um estado com fronteiras para outros países que buscava uma identidade. Até meados e final do século XIX, o gaúcho era visto como um mestiço, um vagabundo errante que não tinha casa. Suas possessões eram poucas: faca, poncho, cavalo etc. Matavam, roubavam, enchiam a cara de álcool, violavam donzelas... Refiro-me, é claro, ao gaucho malo, ou os maulas, como eram chamados no Brasil. No entanto, havia, por exemplo, o gaúcho cantor, o bardo ou trovador da Idade Média. E o vaqueano, o rastreador... Mas foi somente no século XX que, através principalmente de movimentos folclóricos, que a imagem do gaúcho foi resgatada no Rio Grande do Sul por homens como Paixão Côrtes. Eles foram buscar tradições perdidas nos pampas argentinos e uruguaios. Garibaldi virou um gaúcho italiano, orgulho dos rio-grandenses que quiseram ser chamados de gaúchos, não mais de rio-grandenses. Na região do Prata, em contrapartida, onde o discurso sobre o gaúcho é literário – e nada folclórico – Garibaldi permanece um revolucionário cosmopolita. Detalhe: Garibaldi nunca lutou envergando um poncho na América do Sul. É o que diz, entre outros, Bartolomé Mitre, futuro presidente da Argentina que lutou ao lado de Garibaldi durante sete anos, de 1841 a 1848. Foi somente ao desembarcar na Itália, em meados de 1848, após ter passado 13 anos na América do Sul, que começou a posar para fotógrafos e pintores e a lutar envergando vestimentas de gaúcho.


Além de Anita, o que Garibaldi levou com ele, do Brasil?
Levou Menotti, o filho brasileiro nascido no Rio Grande do Sul. Aprendeu a usar a imaginação como comandante da Marinha Rio-Grandense, que dispunha apenas de dois lanchões e tinha de enfrentar a segunda marinha das Américas (a Marinha Imperial brasileira só perdia para a dos EUA). Ao perderem Laguna para os legalistas, Garibaldi lutou nas suas primeiras batalhas militares. Aprendeu muito a se autopromover com o Rossetti, que escrevia artigos sobre ele no O Povo.


Que papel a imagem e a lenda do Gaucho desempenharam no sucesso de Garibaldi na luta pela Unificação Italiana?
Vestir-se de gaúcho foi uma grande jogada de Garibaldi, que já era general desde 1846, após a vitória na batalha de San Antonio, no Prata. Seu objetivo, ao optar pelo figurino do gaúcho, era instilar medo no inimigo. Ele não era homem de fardas, era um durão anticonformista que aprendera e aprimorara táticas de guerrilha na América do Sul. Ao mesmo tempo, os republicanos e moderados admiraram esse homem que passara 13 anos em um remoto continente e voltara vestido de gaúcho (em castelhano mesmo).


Garibaldi foi produto de um marqueteiro – seja na descrição, para o publico italiano, de suas batalhas sul-americanas, seja na incorporação do mito do Gaúcho ? Garibaldi tinha consciência dessa construção, ou foi um instrumento dela?
Creio que até meados dos anos 1840, quando estava no Uruguai, Garibaldi foi um instrumento dessa construção feita inicialmente por Rossetti, no Brasil, e depois por Cuneo, no Prata. Em 1843, Cuneo estabelece contato com Mazzini, o líder republicano exilado em Londres do Risorgimento, como era conhecido o movimento de unificação da Bota. A partir de então tudo que Cuneo escrevia em jornais sul-americanos em italiano e espanhol acabava nas mãos de Mazzini, que reescrevia os textos no seu periódico publicado em Londres L’Apostolato Popolare, com uma tiragem de 2 mil exemplares e distribuídos para filiados espalhados mundo afora de seu movimento republicano Giovine Italia (Jovem Italia). Mazzini era trilíngue (falava italiano, francês e inglês) e portanto também divulgava a imagem de Garibaldi em diários britânicos, franceses e italianos. Foi a partir de então, creio eu, que Garibaldi passou a entender alguma coisa sobre marketing. Quando ele volta para a Itália ele inventa o figurino do gaúcho. Lembre-se que heróis Românticos precisavam de figurinos. Mazzini, conhecido pelos seus seguidores como “O Profeta”, se vestia somente com roupas pretas porque estava de luto pela Itália dividida.


Por que a sociedade italiana idolatrou um Gaúcho, um longínquo mito, num italiano nascido na França (Nice)?
Pelo fato de ele ter nascido em Nice em 1807, que sete anos depois viraria italiana novamente, era atraente a figura de um marinheiro que vira herói com vestimentas de gaúcho. Os italianos – Mazzini, Cuneo e Rossetti – nunca quiseram promover essa imagem do gaúcho, pois os intelectuais da América do Sul e da Europa o viam como um ladrão de cavalos. Mas Garibaldi gostava do lado anárquico do gaúcho, de sua vida boêmia. E encontrou em Alexandre Dumas, o mais vendido novelista da época (ao lado de Júlio Verne), o homem que mais o promoveu como gaúcho. Dumas, que era mestiço, filho de um general negro de Napoleão, adorava o gaucho mestiço, sua irreverência, boemia, vida errante. O novelista também era boêmio, vivia viajando, era bom de garrafa e mulherengo. Escreveu três livros sobre Garibaldi, todos traduzidos imediatamente para o português, o espanhol e centenas de línguas. O francês era o inglês da época. Isso sem contar os inúmeros artigos por ele escritos sobre Garibaldi e reunidos em compilações. O Les Garibaldiens (1861), por exemplo, é uma compilação de sua cobertura como repórter do diário Le Siècle do I Mille (Os Mis), a expedição de Garibaldi para conquistar o Reino das Duas Sicílias, em 1860. Ao destronar os Bourbon, Dumas criou o jornal bilíngue L’Independente (italiano, francês) em Nápoles, e foi seu redator-chefe de 1860 a 1864.


Seu prefaciador, o professor Luiz Gonzaga Belluzzo, cita Hegel para descrever o papel do Homem na História. Na História da Unificação – o Homem providencial foi Garibaldi ou Mazzini? Haveria a Unificação sem Garibaldi? E sem Mazzini?
Sem Vico não haveria Hegel. Sem Mazzini não haveria Garibaldi. Sem Garibaldi, que iniciou o movimento armado do Risorgimento, a Itália não teria sido unificada. Garibaldi foi um herói, apesar dos exageros de Mazzini, Cuneo, Rossetti e Dumas. Mas todo herói tem seus marqueteiros. Napoleão tinha dois jornais e mais os melhores pintores da época a retratá-lo como ele queria ser retratado. Garibaldi é o primeiro herói da história moderna em tempo real e em diversas línguas. Garibaldi é fundamental para a unificação italiana assim como o foi Mazzini. O mais importante, como diria o historiador Jules Michelet, são, no entanto, os movimentos. O homem carismático, no sentido weberiano, norteia o movimento. Indagado quem foi o grande herói do XIX, Michelet retrucou: “A Revolução Francesa de 1789”.


A brasileira Anita era uma companheira política ou a beleza “amazônica” que se incorporava ao mito exótico do marido?
Anita era politizada e republicana, e isso a tornava diferente de outras mulheres catarinenses, em sua maior parte a favor do Império. Amazonas havia aos montes naquele estado porque os homens eram recrutados para as várias guerras e as mulheres tinham de fazer o trabalho deles. Montar em pelo era normal para as catarinenses. Anita conferiu a Garibaldi uma imagem de pai de família e, ao mesmo tempo, de um homem feminista. No Brasil, ele admirava a Anita guerreira. Mas é claro: uma brasileira guerreira também tinha seu lado exótico que encantava os europeus.


Você mostra como Garibaldi conciliava o ateísmo com a tarefa da batizar crianças. Como se explica que os italianos – católicos – admitissem isso?

Os italianos eram católicos, mas detestavam a Igreja e Pio IX, que viam como um bando de corruptos a serviço dos poderosos e estrangeiros. De fato, Pio IX fugiu da República de Roma comandada por Mazzini em 1849 e foi para Gaeta, em território dos Bourbon. De lá chamou os franceses para combater Mazzini e Garibaldi – e os franceses venceram a batalha em cinco meses. E mesmo sendo contra o papa, os italianos apreciavam rituais litúrgicos – e por isso o Garibaldi com seu poncho franciscano benzia crianças.


O “Garibaldi” de Gianni Carta é um personagem fascinante, mas nenhum John Wayne … Embora o lembre, como você diz. Os biógrafos italianos costumam retratar Garibaldi como você, um herói com suas fraquezas … como John Wayne, ou como um semi-Deus, um  Napoleão (que não era francês, mas italiano…)?
John Wayne certamente tinha suas fraquezas. Conhecemos somente o mito. Seria legal ler uma biografia crítica dele. Garibaldi era um herói, mas era antes de tudo um ser humano com suas fraquezas. Quanto a Napoleão conhecemos algumas de suas fraquezas. Uma delas não era sua identidade. Escrevia mal em francês, sua obsessão era o poder. Embora de origem italiana, ele nasceu em 1769, um ano após a Córsega ter se tornado francesa. Garibaldi, por sua vez, viveu a época do nacionalismo e seu país estava dividido. A Itália unida – e Roma como sua capital – eram suas obsessões.