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STF ameaça o direito ao reexame de julgamentos

A norma processual, ritualística, regulamento interno, não pode sufocar o Direito
publicado 23/08/2013
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O professor Heleno Torres apareceu como um dos candidatos a vaga do Big Ben de Propriá.

Torres, provavelmente, teria votado com Lewandowski no exame do embargo de declaração do Bispo Rodrigues.

Clique aqui para ler "Janio critica Barroso".

Talvez por isso tenha sido preterido pelo ministro zé da Justiça.

Clique aqui para ler "Gilmar joga a Globo contra Rosa e Carmen Lucia".


Democracia e devido processo legal: o direito constitucional de reexame dos recursos pelo STF



Heleno Taveira Torres – Professor da Faculdade de Direito da USP

A guinada formalista do Supremo na análise dos “embargos de declaração” da “AP 470” é algo que deve merecer reflexões. Um processo iniciado e concluído em caráter terminativo, ao tempo que não foi admitido o desmembramento para a primeira instância, reclamaria o emprego do método de interpretação conforme à Constituição, de sorte a evitar supressão do direito de acesso a recursos, pelo direito ao reexame do julgado (art. 5º, LV – “aos (...) acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”).

Ora, ao serem recusados os recursos, sob alegação de mera forma (ausência de contradição ou de obscuridade), em processo com rito unitário, a norma processual prevalece sobre o direito fundamental, o que não se pode admitir em nenhuma hipótese. Corrompe-se o valor democrático do processo, com prevalência da forma sobre os valores do contraditório e da ampla defesa.

Condenar um grupo de pessoas sem dar-lhes o direito integral ao devido processo legal é assumir o arbítrio como medida de justiça e os condenados como bodes expiatórios da nossa história de corrupção. Estou convencido que nossa cultura mudou e os homens e mulheres de hoje já não toleram malfeitos de qualquer espécie. Celebramos, igualmente, essa fundamental mudança. Sejamos, hoje e sempre, implacáveis com as práticas de corrupção. Contudo, não podemos aceitar que réus corram o risco de serem julgados sem direito a reexame do julgado, que é o fundamento basilar do direito aos recursos judiciais.

Por óbvio, sabemos exatamente os limites dos embargos de declaração. Entretanto, a particularidade desse processo reside justamente na ausência de recursos expressos no atual Regimento do STF (embargos infringentes estão pendentes de decisão quanto à recepção pela Constituição de 1988). Destarte, não flexibilizar seu alcance, numa intepretação que permita equilíbrio entre as hipóteses de cabimento e o fim dos princípios constitucionais, implica severa afronta à segurança jurídica e à realização da justiça. Um legalismo como ideologia e um literalismo hermenêutico inconcebíveis e conflitantes com a hermenêutica constitucional da doutrina contemporânea.

Como observei em artigo recentemente publicado na Consultor Jurídico, o princípio da tripartição de Poderes não está em crise, ao menos na minha opinião, mas reclama cautelosa atenção de todos. O momento é de vigília permanente, pois o máxime princípio da democracia, quando integrado de modo inexorável ao Estado Constitucional, postula que a igualdade e a liberdade dos cidadãos sejam preservadas nas suas máximas possibilidades, restringidas unicamente pela legalidade, como medida e limite de atuação dos órgãos de estado, quando atendido o devido processo legal. Nenhuma restrição às liberdades individuais pode prescindir do cumprimento integral do devido processo legal e seus subprincípios, como o duplo grau de jurisdição, a livre produção de provas e o juiz natural.

No caso do Judiciário, ao tempo que a vontade de julgadores, com suas ideologias ou crenças personalistas, afastam o efetivo cumprimento do devido processo legal e das garantias constitucionais, mormente aqueles do direito de acesso ao recursos e meios a eles inerentes ou da livre apreciação de provas, qualquer decisão tomada será fruto do arbítrio, e não de prestação jurisdicional. Independentemente do tempo a ser despendido (e se o STF não queria tardar tanto com uma única causa, pois bem, que autorizasse o desmembramento), o direito de acesso a recursos não pode ser cerceado, sob pena de nulidade integral do acórdão, viciado, ab initio, de vitanda inconstitucionalidade.

Ora, negar o acesso (material e efetivo) a recursos, equivalente do duplo grau de jurisdição, que permita, sim, a concretização do direito fundamental de reexame ou revisão do julgado, é o mesmo que negar aplicação à Constituição. Ainda que seja para manter inamovíveis as posições assentadas no processo.

A sociedade deve esperar do Judiciário o construir uma hermenêutica avançada, mas nunca em detrimento do devido processo legal, corolário do princípio do Estado Democrático de Direito.

É da essência do Estado de Direito a substituição da vingança privada ou das pressões coletivas pelo cumprimento do devido processo legal. Decisões judiciais são legitimadas pela independência, ainda que sejam contramajoritárias. Daí o sentido das garantias dos juízes. Ao Judiciário cabe a execução das leis. Somente quando estas se encontrem em aparente conflito com a Constituição pode o juiz afastar sua aplicação ou interpreta-la em conformidade com a Constituição, como no caso concreto.

Portanto, em nosso País, numa interpretação conforme à Constituição, não pode existir decisão, de qualquer tribunal, que afaste o direito de acesso a recursos. Não se faz necessária a observância de instância superior, o que não existe no caso do STF, para efetivar o princípio de “duplo grau de jurisdição”, mas que todo cidadão tenha acesso a recursos e os meios inerentes ao devido processo legal, ainda que para o mesmo Tribunal. E que estes recursos sejam examinados com independência e ampla liberdade, pois seria amplamente inconstitucional receber apenas formalmente os recursos e recusar-lhes a “revisão” do que foi decidido, segundo as alegações enfrentadas. Se as provas ou as razões apresentadas não forem suficientes, nada se tem a modificar; entretanto, presentes motivos relevantes, o juiz não pode temer modificar sua decisão, ainda que o Processo demore o tempo necessário.

Definitivamente, não temos o direito de legar para as gerações vindouras a deterioração do princípio do devido processo legal e do direito aos recursos legais. Precisaremos extrair muitos ensinamentos desse julgamento da Ação Penal 470 para o futuro da democracia nos processos judiciais, tanto das suas virtudes quanto dos seus tropeços. Se há uma “página virada”, esta só poderá ser compreendida como a primeira parte do julgamento. Enquanto o devido processo legal não se esgotar, com os meios e recursos a ele inerentes, não haverá “condenados” ou penas a executar. A força da independência do Tribunal (alheio a quaisquer pressões), com rigor de avaliação na apuração das provas, afastamento das contradições e obscuridades, além de respeito ao contraditório, é que fará sua história. Nunca capitular aos anseios pautados por interesses políticos episódicos.

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