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Comparato desafia Cunha

Ele pisoteou a Constituição !
publicado 04/06/2015
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​O Conversa Afiada ​​reproduz ​parecer que ​o professor Emérito da Faculdade de Direito de São Paulo, Fábio Konder Comparato ​redigi​u​ a pedido do Conselho Federal da OAB, a fim de instruir mandado de segurança impetrado por ​sessenta​ deputados contra o ​presidente da Câmara,​ Eduardo Cunha​, que se encontra em viagem a Israel, França e Rússia, enquanto a Justiça não decide se lhe envia uma tornozeleira eletrônica.

(Enquanto em viagem, o insigne deputado terá que responder a demanda da Ministra Rosa Weber, do Supremo, exatamente sobre a matéria de que trata o Professor Comparato.)

Ao parecer:


Breve Análise Jurídica



A Constituição Federal de 1988 abre-se com declaração solene de que “a República Federativa do Brasil [...] constitui-se em Estado Democrático de Direito”. Aí estão, portanto, condensados os três princípios cardeais do regime político brasileiro: a República, a Democracia e o Estado de Direito.

O episódio ocorrido na Câmara dos Deputados com a rejeição, em 26 de maio próximo passado, da Proposta de Emenda nº 5 de 2015, seguido da imediata aprovação, em 27 de maio, da assim chamada “Emenda Aglutinativa” nº 22/2015, ambas referentes ao financiamento de campanhas eleitorais por pessoas jurídicas, representou, por si só, o atrabiliário rompimento desses três princípios fundamentais.

Senão, vejamos.

Violação do princípio republicano

Como dispõe o art. 3º da Constituição Federal, “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:


I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

...

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Tal significa que os Poderes do Estado têm o dever constitucional de jamais sobrepor interesses particulares de qualquer natureza, ainda que legítimos, ao bem comum do povo brasileiro, correspondente à res publica romana.

Ora, a manobra antirregimental, perpetrada pelo Presidente da Câmara dos Deputados naquele episódio, representou evidente e declarada sobreposição dos interesses particulares dos candidatos a postos eletivos e de seus financiadores privados, ao bem comum de todos os brasileiros. Com efeito, ninguém pode em sã consciência negar que os pactos de financiamento privado de campanhas eleitorais representam uma espécie de contrato bilateral do ut des, sob a forma de doação com encargo (Código Civil, art. 553). Não se trata de mera liberalidade, pois haverá quem desconheça que o donatário, ao aceitar os recursos financeiros, assumiu tacitamente o compromisso de agir em benefício do doador ao exercer a função parlamentar?



Violação do princípio democrático

A essência da democracia, como o étimo grego indica (demos + kratos) significa, é enfaticamente expressa no art. 1º, parágrafo único da Constituição Federal: “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Note-se, porém: o povo, ou seus representantes eleitos, não estão jamais habilitados a exercer o poder de qualquer modo, mas sim “nos termos desta Constituição”.

As manifestações constitucionalmente admitidas da soberania popular vêm indicadas no art. 14, a começar “pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos”. Ou seja, sob o aspecto político, o povo é constituído pelo conjunto dos cidadãos brasileiros, únicos obrigados ao alistamento eleitoral e ao exercício do voto, como precisam os parágrafos do mesmo artigo.

As pessoas jurídicas, por conseguinte, não fazem parte do povo, não são cidadãs. Tirante os partidos políticos, nenhuma delas tem legitimidade para arregimentar cidadãos, no cumprimento dos deveres eleitorais. Em consequência, é de todo aberrante possam elas, lançando mão de seu poder econômico, dispor de uma influência dominante sobre as decisões dos representantes do povo soberano. O candidato a posto eletivo, que aceita essa condição subalterna de financiamento, deixa ipso facto de ser representante do povo, passando ao contrário a representar no Parlamento interesses próprios de entidades não cidadãs. Ou seja, o repúdio à democracia.



Violação ao princípio do Estado de Direito

Como sabido, a noção de Rechtsstaat foi cunhada pela doutrina publicista germânica no final do século XIX, para qualificar a organização estatal em que nenhum poder é legitimamente exercido em desrespeito à ordem jurídica.

Conforme assinalado acima, a representação política do povo brasileiro deve obedecer estritamente às normas inscritas na Constituição Federal. Ora, inegavelmente, o supremo poder representativo do povo no plano político é o de votar emendas constitucionais. Tanto mais que, em nosso ordenamento jurídico, não existe a menor possibilidade de participação direta do povo nesse processo, dado que o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular dizem respeito unicamente a leis.

As normas referentes à votação de emendas constitucionais acham-se inscritas no art. 60 da Constituição. Pois bem, o aberrante episódio ocorrido na Câmara dos Deputados nos dias 26 e 27 de maio último representou escancarado desrespeito à norma do § 5º desse artigo, a saber, “a matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa”.

A presidência da Casa, além de pouco se importar com essa expressa proibição constitucional, ainda não teve escrúpulo algum em pisotear as normas regimentais referentes à matéria.

Assim é que o art. 202 do Regimento Interno da Câmara determina que “a proposta de emenda à Constituição será despachada pelo Presidente da Câmara à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, que se pronunciará sobre sua admissibilidade, no prazo de cinco sessões, devolvendo-a à Mesa com o respectivo parecer”. No § 1º do mesmo artigo, dispõe-se que, inadmitida a proposta, poderá o seu autor requerer a apreciação em plenário. E se ela for então admitida, “será submetida a dois turnos de votação com interstício de cinco sessões” (§ 6º). Como se viu, esse interstício de cinco sessões do plenário da Câmara foi simplesmente encurtado para 24 (vinte e quatro) horas!

Nada mais é preciso acrescentar para reconhecer no funesto episódio uma das mais graves arbitrariedades jamais cometidas em toda a nossa história parlamentar.


São Paulo, 1º de junho de 2015



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