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Alencastro e a escravidão: a alma do Brasil está na África

O Conversa Afiada reproduz trechos da entrevista que Mariluce Moura fez com o historiador Luiz Felipe de Alencastro.
publicado 16/11/2011
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O Conversa Afiada tem o prazer de reproduzir alguns trechos da excelente entrevista que Mariluce Moura fez com o historiador Luiz Felipe de Alencastro, na revista Pesquisa FAPESP, de outubro de 2011 (a íntegra está em www.revistapesquisa.fapesp.br).

Alencastro é autor de uma obra monumental, “O trato dos viventes: formação do Brasil nos séculos XVI e XVII”, publicado em 2011 pela Companhia das Letras.

A entrevista consegue a proeza de resumir a obra de Alencastro de forma fiel.

O Conversa Afiada aproveita o ensejo para prestar singela homenagem a Ali Kamel, o nosso Gilberto Freire, e a outro astro global, Herraldo Pereira, que processa este ansioso blogueiro por “racismo” (?), com a ajuda do ex-Supremo Presidente Supremo do Supremo, Gilmar Dantas (*).

Vamos ao Alencastro, para devolver a discussão ao um plano superior:

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O ponto central dessa história é certamente a visão de que as raízes desta nação encontram-se, não em seu próprio território, mas num espaço transcontinental, luso-brasileiro e luso-africano, fortemente sustentado por uma zona econômica formada pelo Brasil e por Angola que se mantém do século XVI até a efetiva extinção do tráfico negreiro em 1850. A força dessa relação econômica com a África já era patente, aliás, para o Padre Antonio Vieira, que, em obra citada pelo autor do livro, Luiz Felipe de Alencastro (p. 232), observa que o Brasil “vive e se sustenta” de Angola, “podendo-se com muita razão dizer que o Brasil tem o corpo na América e a alma na África”.


Alencastro, historiador e cientista político, 65 anos, a par de oferecer neste livro, central em seu trajeto intelectual, reflexões embasadas em farta do-cumentação para que se possa repensar a formação do Brasil fora do olhar simplista da dominação Norte-Sul e das lutas só no interior da colônia – dando um novo peso às expedições luso-brasílicas que partem do Brasil para a África no século XVII –, o faz valendo-se de uma narrativa excepcionalmente rica. Seu domínio nesse campo lhe permite entremear as variáveis históricas de longa duração sobre as quais se move, recorrendo quando necessário inclusive a outras disciplinas, com fatos contados em ritmo de aventura e micro-histórias individuais relatadas em minúcias instigantes. O projeto completo de Alencastro de repensar a formação do Brasil inclui mais dois livros em curso, capazes de estender sua visão até 1940. Afinal, como ele diz na conclusão de O trato dos viventes, para apreender a formação do Brasil “nos seus prolongamentos internos e externos”, há que se considerar que “de 1550 a 1930 o mercado de trabalho está desterritorializado: o contingente principal da mão de obra nasce e cresce fora do território colonial e nacional”.

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... como ele diz na conclusão de O trato dos viventes, para apreender a formação do Brasil “nos seus prolongamentos internos e externos”, há que se considerar que “de 1550 a 1930 o mercado de trabalho está desterritorializado: o contingente principal da mão de obra nasce e cresce fora do território colonial e nacional”.


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Até porque nem existia Brasil no começo dessa história. Existiam o Peru e o México, no contexto pré-colombiano, mas Argentina, Brasil, Chile, Estados Unidos, Canadá, não. No que seria o Brasil, havia gente no norte, no Rio, depois no sul, mas toda essa gente tinha pouca relação entre si até meados do século XVIII. E há aí a questão da navegação marítima, torna-se importante aprender bem história marítima, que é ligada à geografia. Frédéric Mauro trabalhava nessa perspectiva, por exemplo, com o vice-reino da Nova Espanha e de Vera Cruz, que englobava não só a América Central e o México, mas também as Filipinas. Essa compreensão me deu muita liberdade para ver as relações que Rio, Pernambuco e Bahia tinham com Luanda. Depois a Bahia tem muito mais relação também com o antigo Daomé, hoje Benin, na Costa da Mina. Isso formava um todo, muito mais do que o Brasil ou a América portuguesa.


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Raposo Tavares e os 1.200 paulistas de sua bandeira saem por esse sertão afora em 1648 e vão chegar a Belém em 1651. É uma das maiores marchas por terra daquela época. Vão até parte da Bolívia, depois sobem pelos rios, chegam em Belém, mas para voltar a São Paulo tiveram que ir a Lisboa porque não tinha navio que viesse para baixo com a correnteza que vai para o norte, a partir do Rio Grande do Norte, e os ventos que sopram para o norte ou para leste e oeste. Se tentassem, o barco os levaria para a Guiana. Inversamente, era bastante fácil ir a Luanda e ao Daomé saindo da costa brasileira abaixo de Pernambuco porque os ventos e as correntes eram favoráveis, tinha navegação disponível e isso teve influência até numa reorganização das dioceses. Depois do período filipino, a Espanha pressionou o papa para não reconhecer o Portugal dos Bragança e aquilo se arrastou até 1669. Bispos morriam e não eram renovados, dioceses ficavam abandonadas. Na reorganização, fizeram uma nova diocese no Maranhão e ela dependia do arcebispado de Lisboa.


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esse fato de ter sido no século XIX a única monarquia das Américas, com o apoio da burocracia portuguesa, levou a que no século XIX se começasse a escrever uma história de encomenda direta da Coroa, para mostrar que o Brasil era unido graças exatamente à monarquia e que sempre houve um sentimento do povo, dos colonos portugueses que estavam aqui, a respeito dessa nação – como se eles tivessem a premonição da nação. A ideia que já se sabia que o Brasil existia não tem base documental nenhuma,


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Uma coisa que ninguém fala é que Os lusíadas, que é de 1572, poema para o qual Camões se documentou para narrar a epopeia dos descobrimentos, como todo mundo sabe, fala em suas 1.200 estrofes apenas quatro vezes do Brasil. Duas de maneira indireta. Isso dá a dimensão da insignificância que era o Brasil no século XVI. Importante então era a Índia, a Ásia portuguesa.


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Escrevi em 1979 um artigo sobre “O tráfico negreiro e a unidade nacional brasileira”. A coisa é a seguinte: embora o Rio de Janeiro já fosse capital do vice-reino desde meados do século XVIII, foi quando a Corte veio em 1808 que se criou mesmo um polo administrativo. E o Brasil logo era o único lugar na América do Sul que tinha uma monarquia, fato prestigiado pela Europa porque a república era vista como ameaça. Portanto, o peso da vinda da Corte é uma das razões atribuídas à unidade. O que vejo é que, quando o Brasil fica independente, ele é o único país que está praticando o tráfico negreiro como sempre fez, a partir da relação direta que tinha com a África. Essa pilhagem passa a ser vetada pela Inglaterra frontalmente. A Inglaterra domina os mares, tem meios de pressão, era um pouco a ONU, o Vaticano e os Estados Unidos, tudo somado. O grande império que ditava a lei. Mas o Brasil tinha uma economia agrícola de exportação ligada às oligarquias regionais, metidas no comércio de africanos e na atividade escravocrata. E o Império se legitimava internamente porque a Coroa se apresentava às oligarquias como o melhor mandatário desse país complicado junto à diplomacia europeia e, em particular, junto à Inglaterra. E o Império começa a fazer esse país desse tamanho, a fazer uns acordos de fronteiras. A Independência já fora negociada de forma triangular, porque a Inglaterra representava também Portugal. O pai era rei de Portugal, o filho imperador do Brasil, o intermediário, a Inglaterra.

O que é essa negociação triangular?

Portugal tinha uma dívida com a Inglaterra relativa ao custo militar da expulsão dos franceses, e dizia que não tinha dinheiro. A Inglaterra negociava: “O Brasil deve pagar a Portugal uma indenização pela Independência”. O Brasil pagou. Tomando dinheiro emprestado de quem? Dos Rothschild, banqueiros ingleses. O dinheiro nem saiu de lá e o Brasil carregou essa dívida até a República. É um dos raros países do mundo que pagou a Independência! Como o empréstimo brasileiro junto aos Rothschild estava garantido pela renda da alfândega do Brasil, recolhidos na importação e, sobretudo, na exportação do Rio de Janeiro, a Inglaterra também não tinha interesse em que o governo se fragmentasse. De repente o governo do Rio de Janeiro empobrecia e isso quebrava o principal banco inglês que havia emprestado dinheiro ao Brasil. A pergunta é, afinal, quem pagou o pato pela unidade do Brasil?


E quem pagou?

Os 750 mil africanos que entraram aqui depois da proibição legal do tráfico em 1831. Os navios negreiros desembarcavam ilegalmente até 40 mil africanos por ano no Rio de Janeiro e ninguém via. Legalmente, nos termos da própria legislação brasileira, eram gente livre mas viraram escravos, como explico adiante. E isso manteve a unidade nacional, porque o imperador agora se legitimava com todas as oligarquias dando cobertura a essa pirataria.

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antes de 1808 o primeiro porto do comércio brasileiro era Lisboa e o segundo era Luanda. Depois de 1808 e até 1850 o primeiro passa a ser Liverpool, mas o segundo é sempre Luanda. Então o que eu chamo de matriz espacial colonial, a matriz do Atlântico Sul, não foi quebrada em 1808 nem em 1822. Os pulmões do Brasil continuaram na África, em Angola e na Costa da Mina e em Moçambique.

Até que o tráfico de fato acabe.

Sim, até 1850. E tinha gente importante como Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850), mineiro, pai da pátria, ministro importante durante a Regência, senador e membro do Conselho do Estado, que achava que ainda dava para empurrar com a barriga, enfrentar a Europa e a marinha de guerra britânica, porque acabar com o tráfico ia arruinar todo mundo no Brasil. O Brasil deu errado no século XIX porque os governantes, a elite do país tomou o bonde errado em 1822 e o preço pago foi alto.

O bonde errado foi continuar apostando suas fichas no tráfico, nessa relação econômica com a África por quase 30 anos?

Sim, é claro que isso permitiu o desenvolvimento do café, mas o peso do atraso para o país, a exploração brutal da mão de obra, o afundamento, a destruição de boa parte da frota mercantil brasileira pelos ingleses, o encarecimento do transporte, tudo isso constituiu um preço muito alto. Sobretudo, houve o sacrifício das duas últimas gerações de negros e mulatos livres ilegalmente mantidos na escravidão. De fato, quando acabou o tráfico legalmente em 1831, a lei dizia: 1) o tráfico está proibido, 2) o africano que desembarcar aqui do navio negreiro é livre quando pisar na praia e 3) quem mantiver essa gente na escravidão é um sequestrador, está mantendo gente livre em cativeiro privado. Mas a lei não pegou. Depois o imperador foi embora, a Regência quis fazê-la cumprir. Aí, em 1848, Eusébio de Queirós assumiu como ministro da Justiça, os ingleses estavam endurecendo as pressões, e Eusébio, que tinha sido chefe de polícia durante 11 anos e nunca pegou ninguém, chamou os negreiros para dizer que não dava mais. E eles votam a Lei Eusébio de Queirós em sessão secreta no Parlamento, acabando definitivamente com o tráfico. Como acaba mesmo, é claro que houve uma negociação. Uma atividade que dura 300 anos, clandestina há 30 anos, lucrativa para um monte de gente e de repente acaba de uma vez só, não indica que a polícia ficou ótima ou que subitamente todo mundo ficou decente. O fim brusco do tráfico em 1850 mostra que houve uma negociação intensa entre as partes envolvidas, entre a bandidagem negreira, os fazendeiros e o governo.

E uma negociação em moeda mesmo?

Não, o Estado decidiu que ia fazer estrada de ferro para o pessoal do café, o mais envolvido na pirataria negreira àquela altura, o que diminuiria o preço do transporte. Decidiu também fazer uma lei para trazer imigrantes, baixando a taxa de exportação do café e fazendo uma porção de arreglos. Aí vem o arranjo principal, que é dito, não escrito, mas acaba sendo efetivado. Porque de repente tinha 750 mil africanos e os filhos deles, os netos, todos ilegalmente nas mãos de soi-disant proprietários. Mas nenhum desses proprietários foi condenado por sequestro e quase todos os indivíduos livres continuaram a ser mantidos na escravidão. Este é o fato escandaloso, um dos maiores crimes do século XIX, ocorrido no Brasil, que não se ensina nas nossas escolas e faculdades: as duas últimas gerações de escravos no Brasil não eram escravos e estavam ilegalmente mantidos como propriedade de alguém, como cativos. Alguns abolicionistas foram ao tribunal, Ruy Barbosa, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Luís Gama, e conseguiram libertar uns 500 indivíduos entre as centenas de milhares ilegalmente escravizados. Isso virou um tabu na história do Brasil e hoje pouca gente sabe que a escravidão era não somente imoral, mas era também, e sobretudo, ilegal. José do Patrocínio, em 1880, na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, fez o cálculo do que o fazendeiro, a viúva e até o pedreiro que tinha escravo deviam para essa gente ilegalmente mantida em escravidão. Quando hoje se fala em indenização sempre aparece o pessoal que é contra a cota para dizer que isso é importado dos negros dos Estados Unidos, que, por sua vez, copiaram o exemplo dos judeus depois da Segunda Guerra Mundial. Mas a reivindicação no Brasil é de 1880.

Mas os 500 foram atendidos e...

Esqueceram-se de 1,5 milhão de escravos que eram parte dos 9 milhões de habitantes do Brasil em 1872. Fora os que morreram antes. Então foram eles que pagaram o preço da unidade nacional.

Gostaria que você explicasse o caráter econômico que atribui às expedições mistas de portugueses e brasileiros que foram guerrear na África no século XVII.

Isso é justamente outra forma de mostrar que não tinha ainda Brasil. Os paulistas estavam envolvidos na caça aos índios no Paraguai, produzindo alimentos em São Paulo para venda na própria região, enquanto Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia estavam em ligação marítima com a África e produzindo para exportação. Era outro sistema desde a época espanhola, mas, sobretudo, a partir de 1648 na guerra holandesa. Quando os holandeses chegaram em Recife para controlar o açúcar, perceberam que o que dava dinheiro não era só plantar cana e fazer o açúcar, mas também vender africanos para os senhores de engenho. E eles saíram de Recife em 1641 para atacar Angola e pegar assim os polos do sistema escravista. Quando começou a guerra de guerrilhas em Pernambuco, saiu também uma expedição do Rio de Janeiro, para expulsar os holandeses de Angola em 1648.

Ou seja, o Rio era um entreposto comercial desse grande negócio.

Sim, era um nexo comercial nesse negócio que tinha a ver com Buenos Aires. Então, do Rio, os portugueses vão se equipar, financiar uma frota e vão atacar os holandeses em Angola. Não vão levar ajuda para os rebeldes anti- -holandeses de Pernambuco, querem é pegar o deles. Derrotam os holandeses em agosto de 1648, em Luanda, em São Tomé e em Benguela e os expulsam de Angola, o que vai enfraquecê-los em Pernambuco. A partir desta época, começa haver uma presença mais ativa, comercial, política e militar, dos colonos do Brasil em Angola, expandindo o tráfico e as bases da ocupação portuguesa na região. É interessante notar que o tráfico inglês, importantíssimo, maior que o português até o final do século XVIII, o tráfico francês, o holandês, todos mandavam seus agentes até as praias e lá tinham seus intermediários locais, mas só os portugueses junto com os colonos brasileiros entraram terra adentro, pilhando e expandindo as redes de tráfico na África e mais exatamente em Angola.

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E entraram para valer no continente.

Nenhum outro país europeu fez isso, só Portugal, com o apoio desse colonato do Brasil e por causa da gula desse colonato. Sem a compreensão disso, não se entende o Brasil. Toda essa coisa de ciclo do açúcar, do ouro, do café, afora o pau--brasil, que era um negócio de índio, só existe movida a escravos que vinham da África. Foi assim que Minas Gerais pôde ser criada, a partir de cidades já existentes. A sucessão de ciclos produtivos no Brasil só é possível graças ao grande ciclo reprodutivo do tráfico negreiro, graças à injeção contínua de energia humana deportada da África para o Brasil.

É esse então o capital intensivo o tempo todo na formação do país.

Sim, e é isso que vai dar vantagem ao Rio de Janeiro e a São Paulo sobre o Nordeste, sobre Bahia e Pernambuco, depois da Independência. A desigualdade regional vem não só de os primeiros estarem no negócio do café enquanto os outros permaneciam no açúcar, mas do fato de os negreiros do Rio disporem de uma logística transatlântica que lhes fornecia mais escravos. Isso também aconteceu em 1808, e quase não se tem ideia de como 1808 foi também o ponto do atraso. Por quê? Porque a Inglaterra, em1807, e os Estados Unidos, em 1808, proíbem o tráfico. Então, toda a rede negreira que tinham montado nos portos africanos é engolida pelo Brasil. Os negreiros brasileiros também vão se beneficiar com as novas mercadorias para o escambo na África que começaram a ser importadas da Inglaterra depois da abertura dos portos, em 1808.

É um comércio de armas, de bens de capital, de víveres, de gente...

Isso tudo, inclusive Moçambique, que não estava antes no circuito, vai ser abocanhado pelos negreiros brasileiros, principalmente do Rio de Janeiro, depois de 1808.

Mas por que 1808 em seu olhar é também o atraso?

Porque vai marcar o Brasil com o trabalho forçado e com uma forma de tráfico negreiro, de dominação econômica e social que já estava saindo do mapa no mundo. Porque vai transformar o Rio na maior cidade escravista do mundo, só no Império Romano há algo comparável: o Rio de Janeiro tinha 260 mil habitantes em 1849 e desse total 110 mil eram escravos, 42%. Isso não tem paralelo e trata-se então da maior cidade do hemisfério Sul!

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Tem um momento no Trato dos viventes em que você diz que o estatuto dos índios se define em relação ao dos escravos negros. Em que sentido?

É que não dá para entender a legislação indígena numa lógica própria, sem ver que ela está em relação com os escravos africanos desde o século XVI. A política de pressão em cima das aldeias para escravizar, reprimir e matar índios foi modificada em 1580, porque os próprios conselheiros jesuítas defenderam amaciar as relações com os índios porque eles os defendiam das revoltas negras. Nunca os missionários entraram na briga para saber se o africano havia sido ilegalmente escravizado ou não, mas a escravidão indígena foi embargada pelos missionários desde o começo, e isso também é um pouco interesse dos negreiros, ou seja, que a escravidão africana predomine.

Você também trata da questão da dessocialização e da despersonalização do escravo negro. Dá para explicar essas noções?

Eu tomei emprestadas essas noções de Claude Meillassoux, antropólogo econômico importante, autor de A antropologia da escravidão. Ele mostra que a escravização tem dois processos: o primeiro é a despersonalização, e o segundo e a dessocialização, quer dizer, a pessoa é extraída de sua comunidade, do seu país, da sua nação, da sua língua e da sua religião para ser levada a outro lugar. O escravo é sempre um estrangeiro. E, nesse outro lugar, ele vira coisa, é despersonalizado. Vira mercadoria, gado, no momento em que é ferrado. O ferro é a marca do imposto pago à Coroa. Em quimbundo, língua de Angola, chamava-se karimu, e daí vem a palavra carimbo. Na ilha de Luanda, hoje ligada ao continente, os grandes navios negreiros ficavam ao largo e as canoas atravessavam a baía para embarcar e pegar os escravos que estavam nos depósitos na cidade. Dali eles eram encaminhados para os navios no porrete, porque entravam em pânico, achavam que iam ser devorados pelos europeus e que seus ossos serviriam para fazer queijo e vinho. A memória popular ali da ilha de Luanda, que ainda alcancei em 2003, dizia que só quando eles iam para o Brasil é que se tornavam escravos. É difícil se dar conta do choque psicológico terrível sofrido por essas pessoas que vinham de longe, viajando no interior da África às vezes um ano inteiro até chegar a Luanda, sofrendo incessante violência física e psicológica dos negreiros africanos. Depois entram em cena os negreiros portugueses e brasileiros e os transportam para o outro lado do oceano. Então eles chegam sofridos, abalados, para serem escravizados. E demoram até tomarem pé, conseguir se revoltar e se comunicar com os outros que vieram de outras terras africanas para o Brasil.


Trata-se de remontar algumas relações em condições completamente adversas.

Sim, remontar relações sociais, se repersonalizar dentro da escravidão. No fundo, o grande traumatismo da população negra é que os indivíduos não sabem de onde vêm. Não sabem de que país vêm.

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Depois de 1850, o que ocorre?

Não se está mais ligado à África, mas a mão de obra ainda depende de fora, da imigração estrangeira. Mas a partir do período 1927-1934 entram mais migrantes nordestinos do que estrangeiros em São Paulo. Aí ocorre outra ruptura, o mercado de trabalho no Brasil se metaboliza, depende somente da reprodução interna da força de trabalho.



(*) Clique aqui para ver como um eminente colonista do Globo se referiu a Ele. E aqui para ver como outra eminente colonista da GloboNews  e da CBN se refere a Ele.