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Santayana traça perfil de Fernando Lyra: um legítimo homem de esquerda

Fernando Lyra, o bacharel de Caruaru, no texto "Legítimo homem de esquerda", por Mauro Santayana.
publicado 21/06/2010
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Legítimo homem de esquerda
Mauro Santayana

Fernando Soares Lyra parece ter a face talhada em terracota. Sua inteligência política se assemelha a um turbilhão, como os que se escondem nas nuvens alvas e altas e desabam sobre as planícies desatentas.

Não é, como parece, um instintivo; na construção de seu pensamento – de esquerda, é claro – trabalha a rica cultura pernambucana, mais próxima da Alemanha e da Inglaterra.

Sertanejo do Agreste, logo astuto, Lyra não revela suas leituras, mas dois nomes lhe são preferidos quando examina a realidade nacional. Nabuco, na análise e formação política do Império, e Gilberto Freire, nos estudos sobre a sociedade patriarcal brasileira, e em seus ensaios sobre as grandes transformações sociais trazidas pela República. Presidente da Fundação Joaquim Nabuco – em que substitui Gilberto, insuperável mestre da sociologia nacional – ele diz que está vendo o frevo passar.

O jovem pernambucano, que chegou à Assembleia Legislativa de seu estado em 1967, e à Câmara dos Deputados quatro anos depois, não se ausenta das inquietações do momento, quando passa dos 70. Está atento aos fatos de hoje, acompanha os giros do mundo e a atualidade nacional.

Acha que, não obstante os grandes avanços, o Brasil continua sob insuportável desigualdade social.

Não se trata apenas do problema da renda – embora a melhor divisão dos resultados do trabalho comum contribua para alguma ascensão na sociedade.

A divisão, a seu ver, é mais profunda. A sociedade brasileira nasceu dividida, com índios e negros de um lado, e brancos europeus do outro.

No decorrer do tempo, os brancos – antes fidalgos funcionários da Coroa – foram se tornando mestiços e pobres, e, como tal, vistos como desprezíveis. Fernando Lyra é incisivo: o Brasil só será grande quando for de um só povo, com todos convertidos em cidadãos de uma mesma identidade, a de brasileiros.

– Comecei na política aos 17 anos, em 1955, combatendo um candidato a prefeito apadrinhado pelo governador Cordeiro de Farias.

Em 1959, participei da campanha vitoriosa de meu pai a prefeito de Caruaru.

Daí em diante, enquanto estudava direito, mantinha meus contatos com as bases eleitorais. Sou cidadão de Caruaru, embora nascido no Recife.

Não estou me igualando a Jesus Cristo, mas comigo aconteceu mais ou menos a mesma coisa. Minha mãe veio ao Recife, não sabia quando eu era esperado – e, eis que, de repente Fernando Lyra nasce. Levei algumas horas para abrir os olhos. Creio que os abri sob o sol do Agreste.

Fernando passeia pela memória das paisagens de origem, para lembrar que seus avós paternos eram de um lugar então remoto, nos cafundós do Agreste.

– Já ouviu falar na Lagoa dos Gatos? De lá saiu meu pai, primeiro mascateando, depois se fixando em Caruaru, onde se tornou vendedor de automóveis e caminhões, montou uma agência revendedora de grande porte e, em seguida, entrou no negócio de ônibus intermunicipais. Sou filho de classe média abastada, mas com sensibilidade social bem definida, porque João Lyra, meu pai, fez a trajetória dos empreendedores.

Não chegou a milionário, mas tinha a mesma postura diante do trabalho e dos trabalhadores.

Acho repugnante o tratamento desdenhoso de algumas elites para com os pobres. Em Caruaru, os pobres sempre estiveram conosco, estão conosco.
Formação do governo foi lição de habilidade

Lyra estava cotado para ser chefe da Casa Civil, e disso foi informado por Francisco Dornelles e Aécio Neves. Mas Tancredo, que se viu pressionado, pelos seus amigos juristas, para escolher entre eles o ministro da Justiça – como era da tradição brasileira, preferiu a solução inusitada.

– Foi então que ele convocou o bacharel de Caruaru – resume, gargalhando, como é de seu sadio bom humor.

Lyra perguntou a Tancredo que auxiliares devia escolher. Tancredo lhe deu plena liberdade, com uma restrição: a do diretor da Polícia Federal, que já estava escolhido, o coronel Alencar Araripe, de cuja família Tancredo era amigo, e que fora assessor de Affonso Arinos na Conferência do Desarmamento de Genebra.

Lyra buscou, entre seus amigos do Recife, os dois auxiliares mais qualificados: o advogado José Paulo Cavalcanti Filho, para secretáriogeral do ministério, e Cristovam Buarque, para chefe de gabinete. Como seu consultor jurídico, convocou o advogado carioca Marcelo Cerqueira, conhecido nos meios de esquerda, e para o Departamento de Justiça, outro advogado de presos políticos, Sigmaringa Seixas.

Levou Cristovam e José Paulo juntos, ao seu encontro de praxe com o ministro no cargo, Ibrahim Abi-Ackel. E foi logo disparando: ele era bacharel de Caruaru, mas levava dois doutores por Harvard: José Paulo e Cristovam.

A Procuradoria-Geral da República, então ligada ao ministério, era o seu problema maior. Franco Montoro e Ulysses tinham como candidato o jurista Miguel Reale Júnior, mas os procuradores optaram por José Paulo Sepúlveda Pertence.

Sigmaringa Seixas, que os ouvira, levou a Lyra o nome do mineiro, e Tancredo aceitou a sugestão.

Affonso Arinos Coube também a Fernando Lyra convidar o professor Affonso Arinos para uma das tarefas mais caras a Tancredo, a de presidir a uma comissão de juristas – que se formou meses depois, no governo Sarney – para discutir e sugerir à Assembleia Nacional Constituinte, prevista para reunirse no ano seguinte, um anteprojeto de Constituição.

Arinos, depois de ouvir e aceitar o convite, observou, em tom solene: – Ministro, quero dizerlhe que, em sua esfuziante juventude, vejo e acato o ministro da Justiça de meu país e me disponho a trabalhar nesse projeto, sob o seu ministério.

Tancredo armara o governo certo, e os dois mais importantes ministérios, o da Fazenda e o da Justiça, estavam entregues a homens de sua confiança absoluta: Lyra e Francisco Dornelles. Mas houve problemas de delicadíssima engenharia política, como o da Bahia. Tancredo foi obrigado a sacrificar as forças políticas de Minas, com o argumento de que elas já tinham o presidente. Assim, nomeou três ministros baianos (Antonio Carlos, Valdir Pires e Carlos Santana) e um alto dirigente do estado, com status de ministro, o médico Roberto Santos, para a presidência do Conselho Nacional de Pesquisas.

Lyra não tem dúvida de que Tancredo armara um governo sólido, no qual ele era, ao mesmo tempo, maestro e primeiro-violino, fazendo do arco a batuta.

Mor te Ao terminar a nossa conversa, Lyra se recorda da tragédia brutal da morte de Tancredo. Ao mesmo tempo, está certo de que estes 25 anos de democracia – os mais estáveis da história republicana – nos quais as crises, como a do governo Collor, foram vencidas no respeito à Constituição, só foram possíveis, porque Tancredo não hesitou em sacrificar a sua vida. Lyra relembra que o presidente dominou a dor e a consciência da gravidade de seu estado, naquelas horas finais da formação do governo, para que a vontade do povo, que legitimara a transição, fosse respeitada. Lyra, que é autor de um minucioso livro sobre aqueles meses intensos – Daquilo que eu sei – encerra a nossa conversa: – O destino deu-me a oportunidade de participar desta História, e, mais ainda, de conhecer de perto um dos maiores brasileiros de todos os tempos, o nosso doutor Tancredo.