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Que tal um médico terceirizado, Cunha?

É um escárnio !
publicado 04/05/2015
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O Conversa Afiada reproduz artigo de Inocêncio Uchôa, juiz do Trabalho aposentado e advogado:


A precarização do trabalho



Inocêncio Uchôa

O país assistiu no último dia 22 de abril, às vésperas do dia 1º de maio, a aprovação pela Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei 4.330/2004, que permite a contratação, através de pessoa jurídica, de empregados para todas as suas atividades, inclusive a atividade fim. Significa que doravante o banco poderá contratar empresa para lhe fornecer pessoas para operar como caixas bancários, a indústria metalúrgica poderá contratar empresa para lhe fornecer pessoas para operar como metalúrgicos, a empresa de ônibus poderá contratar empresa para lhe fornecer motoristas, o hospital poderá contratar empresa para lhe fornecer médicos ou enfermeiros, a empresa de aviação poderá contratar empresa para lhe fornecer pilotos, o colégio poderá contratar empresa para lhe fornecer professores, e assim por diante, todos com vínculo jurídico apenas com a empresa fornecedora de mão de obra. Tudo sob a justificativa da necessidade de proteção legal aos 12 milhões de trabalhadores hoje já terceirizados. Nada mais falacioso!

No sistema atual a terceirização é permitida apenas na atividade-meio, como limpeza e conservação, e segurança, nunca na atividade fim. Esta, por representar a razão de ser da empresa, deve ser exercida dentro de relação de trabalho minimamente equilibrada e civilizada, em ambiente empresarial estável, tanto do ponto de vista da corporação como do ponto de vista dos seus empregados e das famílias destes. Um sistema que há mais de 70 anos busca garantir um mínimo de equilíbrio na relação capital-trabalho de nosso país, mantendo-o num patamar semelhante aos praticados pelos demais membros da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

O PL 4330/2004 desequilibra fortemente essa relação, em desfavor da classe trabalhadora e em gravíssimo prejuízo para a sociedade, sendo certo que: a) não se destina a dar proteção aos 12 milhões de trabalhadores hoje terceirizados, mas sim, permitir a terceirização dos outros 40 milhões que hoje têm contrato direto com as empresas para as quais trabalham; b) gerará patamares salariais menores para os terceirizados, com jornadas mais extensas e maiores riscos de acidentes de trabalho; c) a diminuição da massa salarial circulante impactará negativamente na receita previdenciária, impostos e FGTS; d) produzirá efeitos deletérios no direito coletivo do trabalho e nos contratos coletivos, alterando negativamente a relação de força entre sindicatos patronais e de trabalhadores; e) prejudicará acentuadamente a eficiência e eficácia da fiscalização do órgão governamental competente.

De efeito, ao permitir o fornecimento de trabalhadores por cooperativas (muitas vezes falsas), por ONGs, associações civis (até mesmo por uma simples associação de moradores), ou por pessoas jurídicas desprovidas de patrimônio que garanta o cumprimento de suas obrigações trabalhistas, a nova lei produzirá um descomunal e criminoso desequilíbrio na estrutura das relações de trabalho e no próprio direito do trabalho do Brasil, que são matérias de ordem pública e como tal inegociáveis até mesmo pelos próprios trabalhadores, jamais podendo sê-lo por deputados federais a quem esses mesmos trabalhadores ingenuamente confiaram a defesa dos seus interesses na casa legislativa federal.

E não se fale em responsabilidade solidária entre as empresas contratante e contratada nos descumprimentos das obrigações desta, pois isso somente será exigível na ausência de fiscalização por parte da contratante, sendo mais um escárnio afirmar que a empresa contratante fiscalizará a empresa sua parceira do mesmo negócio, além de ser um atentado às prerrogativas de fiscalização conferidas pela lei ao órgão federal competente.

É inconteste que a lei aprovada, além de moral e eticamente reprovável, padece de inconstitucionalidade formal e material, posto que afronta Princípios Fundamentais da República (Título I, da Constituição Federal), em especial o art.1o, III (dignidade da pessoa humana), e o art.3o, I (construção de uma sociedade livre, justa e solidária), III (erradicação das desigualdades sociais) e IV (promoção do bem de todos, sem quaisquer formas de discriminação), assim como afronta Direitos e Garantias Fundamentais (Título II), em especial o art. 7o, XXVII (redução dos riscos inerentes ao trabalho), e art. 8o (liberdade de organização e atuação sindical), e, ainda, o Título VII, art. 170, segundo o qual a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar existência digna a todos, conforme os ditames da justiça social. Afronta também o princípio do não retrocesso social, segundo o qual é defeso alterar o ordenamento jurídico em prejuízo das conquistas sociais já codificadas, mormente, como agora, em que se achacam os interessas mais sagrados das classes trabalhadoras.

A pergunta que fica é que legitimidade tem um deputado federal para aprovar modificação tão descomunal nas relações de trabalho do país, especialmente quando em desfavor dos seus trabalhadores e em prejuízo do equilíbrio das relações sociais, pois é induvidoso que se trata de matéria de natureza fundante, cuja desconstrução requereria, no mínimo, uma consulta plebiscitária para aprovação legitimada, na forma de pronunciamento direto da sociedade, e após debate amplo e aprofundado sobre o assunto.

A Câmara Federal, com o apoio decisivo de 324 dos seus deputados (10 cearenses) achou que não, preferiu ofertar esse presente à classe trabalhadora e ao povo brasileiro neste maio de 2015. Belo presente! Belo escárnio!

Inocêncio Uchôa é juiz do Trabalho aposentado e advogado.



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